Um Conto de Dois Oito de Janeiro
A lição catalã sobre anistia e a verdadeira anatomia de um golpe
Não deixem de ler as Frases da Semana na Gazeta do Povo!
Pense no dia 8 de janeiro de 2023. Agora, imagine que o caos não foi causado por uma turminha de tias do zap e tios do churrasco, mas pela fina flor da sociedade polida — acadêmicos, artistas e políticos.
Com esse pequeno ajuste, todo o estrago já pareceria um pouco mais palatável e intelectualizado, ao menos aos olhos de nossa ‘elite civilizatória’. Mas avancemos. Imagine agora que, em vez de uma sessão de vandalismo improvisada, sem planejamento ou liderança, todo o rebuliço foi fruto de um movimento calculado, orquestrado por líderes ‘históricos’ da esquerda, com o apoio da Polícia e da Justiça locais.
E que, de fato, os manifestantes deste ‘8 de janeiro’ tivessem um plano concreto para derrubar o Governo. Não apenas quebrar vidraças ou pichar estátuas, mas uma conspiração ampla, incluindo a realização de um plebiscito ilegal para se separar do resto do país e instituir a liderança do movimento como um novo Governo.
Digamos também que — seguindo os ritos e liturgias das democracias liberais do início do século XXI — pouco antes do plebiscito ilegal, a Jutiça local tenha mudado as leis eleitorais de forma monocrática, visando cumprir uma determinada missão que lhe fora dada. E, assim, o plebiscito aconteceu, sob suspeitas de fraude, sem auditoria e financiado por entes misteriosos.
Isso ocorreu em 1º de outubro de 2017, na Catalunha, Espanha, quando o líder do governo catalão, Carles Puigdemont, liderou uma tentativa de golpe para separar a região do resto da Espanha. E colocá-la sob seu jugo, é claro.
A polícia local, os Mossos d’Esquadra, foi bastante cordial com os manifestantes que tomavam as ruas para votar no plebiscito ilegal, inclusive orientando eleitores até as seções de votação mais próximas. Enquanto a Guarda Nacional espanhola tentava de todas as formas impedir a realização do plebiscito golpista, Puigdemont — diferentemente de Trump ou Bolsonaro, que orientavam manifestantes a permanecerem pacíficos — incentivou o povo a seguir em frente e se preparar para possíveis confrontos.
Ainda ao contrário de Trump e Bolsonaro, Puigdemont não se limitou às quatro linhas da lei. Em vez disso, declarou unilateralmente a independência da Catalunha e, num arroubo de modéstia digno daqueles que se julgam as almas mais honestas de seus países, humildemente aceitou o ‘mandato implícito’ do povo para tornar-se o comandante supremo dessa nação recém-criada.
Claro que, quase imediatamente, o Senado da Espanha fez o que tinha de fazer: dissolveu o Governo e Parlamento catalães e impôs intervenção direta de Madrid; a justiça espanhola denunciou os conspiradores por rebelião, sedição e desvio de recursos públicos, pedindo penas de até 30 anos de prisão.
Em vez de permanecer no país para enfrentar seu processo cara a cara — como fizeram Trump e Bolsonaro —, Puigdemont (que nunca chegou a ser chamado de tirano ou covarde pela imprensa) encontrou uma maneira de fugir escondido do país, abandonando seus seguidores e deixando o estrago para os outros limparem.
Sete anos depois, após a chegada do socialista Pedro Sánchez ao cargo de primeiro-ministro, uma série de alianças e conveniências políticas foram costuradas para ‘salvar a democracia’ espanhola da ‘ameaça’ vinda da ‘extrema-direita’: o partido Vox, de Santiago Abascal.
O resultado? Uma lei concedendo anistia a todos os 400 conspiradores catalães que foram devidamente julgados e condenados pela justiça espanhola, incluindo aqueles casos mais antigos, vindos desde 2011. E os beneficiados não foram cabeleireiras, pipoqueiros ou vendedores de picolé, mas empresários, políticos e o próprio Puigdemont. Todos gozando do amplo direito de defesa, sendo julgados em diversas instâncias legais, e não por algum tipo de tribunal de exceção.
Ao saber das manobras para conceder anistia aos conspiradores catalães, as ruas de Madrid fervilharam de indignação, reflexo de um povo que já não aguenta mais ver sua história e suas leis sendo rasgadas em nome das ambições da esquerda; ambições tão ‘refinadas’ por trás de um conchavo tão ‘sofisticado’ que as elites se recusam a chamar pelo que realmente é: uma tentativa de golpe de estado.
A história da Espanha, claro, não se resume a esse capítulo. Mas ele representa um tema comum de um país cuja coesão social se equilibra em uma queda de braço constante entre autoridades locais e poder central, e cujas instituições mais duradouras foram justamente esculpidas pelos maiores fantasmas de sua história: a Inquisição e Francisco Franco. Contra eles, toda a violência é justificada, e todo pecado é perdoado.
Entre para nosso grupo no Telegram:
Meu livro “Primavera Brasileira” está disponível na Amazon (em versões eBook e física),, um livro de frases com a crônica do processo eleitoral (por falta de palavra melhor) que o Brasil sofreu em 2022.