Sonolência em Trapos
As opiniões expressas neste texto são do monstro do jornal das oito e não refletem necessariamente as visões ou posições do autor
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“Porque o beberrão e o comilão acabarão na pobreza; e a sonolência os faz vestir-se de trapos”
Provérbios 23:21
Quando Gregor Samsa acordou certa manhã de sonhos inquietantes, encontrou-se transformado em sua cama num monstro horrível. Assim como eu.
Para mim, isso foi uma novidade, mas por anos, relatos da minha transformação vinham ocupando as manchetes, apenas para serem solenemente ignorados. Ainda assim, a revelação foi chocante: eu havia me transformado no monstro do jornal das oito.
Como eu, milhões se transformaram, da noite para o dia ou de uma década para a outra, em monstros semelhantes — muitas vezes por W.O.
Em nossa metamorfose, assim como na de Gregor Samsa, não cruzamos nenhum Rubicão real para nos tornarmos monstros. Em vez disso, fomos engolidos pelas marés volúveis de um Rubicão invisível. A boa notícia é que, com essas marés mutantes, parece que se pode cruzar o Rubicão e depois voltar atrás. Pelo menos foi o que Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes conseguiram.
Mas suspeito que custe mais do que a tal moedinha para o barqueiro. É quase como se você pudesse escolher deixar de ser um monstro, mesmo que não possa escolher tornar-se um, que tipo de monstro você será ou em que medida.
Se me fosse dada a escolha, pelo menos eu optaria por não ser um nazista ou um fascista — os radicias da ‘extrema-direita’. Não esses caras.
Eu não raspei a cabeça, nem me juntei à filial brasileira do Ku Klux Klan. Não conspirei com outros monstros para perseguir os judeus. Pelo menos não que eu me lembre. A ironia é, talvez, se esse fosse o caso, não seríamos considerados monstros.
Ainda assim, eu sou culpado. Se não por associação com os nazistas, então por minha desassociação da sociedade limpinha.
Culpado por Desassociação
“A minha situação naquela época fica mais clara, talvez, se eu a comparar com a de Felix. Sempre que, nas refeições, ele faz algo que na sua opinião é errado, você não se contenta em dizer a ele, como costumava dizer para mim: ‘És um porco’, mas acrescenta: ‘um verdadeiro Hermann’ ou ‘bem como seu pai’.”
Franz Kafka, Carta ao Meu Pai
A sociedade limpinha sabe diferenciar entre Jeffrey Epstein e Jeffrey Dahmer — o último, é claro, nunca seria convidado para a mesa de jantar. Ainda assim, me agrupam com a extrema direita, com os nazistas, sem qualquer nuance ou sutileza.
Talvez a taxonomia de monstros políticos não seja tão generosa quanto a de sociopatas, ou mesmo a de animais peçonhentos — alguns dos quais acabam na mesa, às vezes sentados, às vezes como prato principal.
Mas não o extremista de direita. Não só não sabemos utilizar os talheres das instituições modernas, mas há também o risco de que possamos acabar devorando esses talheres.
Por mais inumano que eu seja considerado agora, eles ainda admitem que posso possuir alguma consciência e racionalidade — talvez não muita, mas ela está lá. Consequentemente, isso prova que não tenho nenhuma consideração pela sociedade limpinha — perturbando sua paz e tranquilidade, recusando-me a me retirar voluntariamente da mesa. Então, eu devo estar fazendo algo errado. Mas o quê?
Desde o dia em que acordei como um monstro, uma questão me atormenta: como me tornei um extremista?
Então, conduzi um experimento: se eu eliminar todos os freios e contrapesos da minha ideologia, deixando-a correr solta, onde isso terminaria? O que acontece se você estender minhas crenças à sua aplicação mais fundamental?
Bem, levar meu sistema de crenças ao seu extremo lógico poderia levar às Cruzadas e à Inquisição. Tudo bem pra mim. Uma forma de cristianismo fundamentalista que provavelmente resultaria em algum tipo de teocracia governando sobre uma cristandade unificada — não o nacionalismo cristão em si, entenda-se.
Certamente não terminaria com um bando de racistas neo-pagãos de sexualidade duvidosa. Assim, não posso aceitar que me tornei o tipo de extremista de direita que a sociedade limpinha nos alerta, nem posso concordar que os nazistas também deveriam ser categorizados como extremistas de direita.
Aqui reside o problema: você foi persuadido a se ver como um ‘direitista’ convencional enquanto reconhece que os nazistas são a ‘extrema-direita’, implicando tacitamente que a expressão mais pura da sua ideologia seria equivalente ao nazismo. Aceitar essa barganha significa que você é ou um nazista moderado ou um extremo idiota — tertium non datur.
Você pode pensar que está se distanciando dos ‘extremistas’ reais, mas não está. Você está efetivamente admitindo: “Sim, eu sou um nazista, mas bem de leve.” Por que o homem evoluiu do ‘macaco’ — alguns ainda estão evoluindo, e alguns talvez nunca evoluam — é aconselhável ter cautela ao exercer suas visões políticas, evitando o risco falso de seu caminho evolutivo levar ao Quarto Reich.
Certo, eu sou um monstro — alguém que quer controlar o corpo das mulheres, que todos morram de Covid, dar um golpe contra nossas instituições, dizimar as pessoas transgênero e incendiar a Amazônia com combustíveis fósseis. Além disso, insisto na liberdade de expressar minha monstruosidade, que agora parece ser o aspecto mais monstruoso sobre mim.
A Política é um Afluente da Cultura, mas a Religião é Sempre a Fonte
“Why pamper life’s complexity
When the leather runs smooth
On the passenger seat?”
The Smiths, This Charming Man
Mas não se trata de mim, assim como a Metamorfose de Kafka não se trata de Gregor Samsa, mas de sua irmã, Grete. Ela decide quando Gregor deixa de ser humano, quando ela já não o vê como um irmão, mas como uma praga, intolerável aos seus olhos.
Tão convencida estava, Grete nem sequer enterrou Gregor após sua morte. Ela deixa para a faxineira varrer seus restos mortais. Afinal, você não enterra pragas; você as descarta com ferramentas vulgares — seja uma vassoura, uma pá ou uma decisão judicial.
As ações de Grete não são manifestações políticas, mas um rompimento de afiliações. Ao expulsar Gregor, Grete nega a ele um lugar na instituição comum — a família e a sociedade em geral. Ela abandona os valores tradicionais de verdade, bondade e beleza, adotando, em vez disso, uma visão severamente utilitária. A verdadeira metamorfose no livro é a conversão de Grete ao materialismo.
Nossas modernas Grete Samsas também não são motivadas politicamente. Sua transformação, como a dela, origina-se de uma crença em um mito: que é a sabedoria dos tecnocratas que traz paz, prosperidade e liberdade.
Essa crença ingênua na democracia como um sistema alimentado pelo eleitor esclarecido, onde políticos e burocratas são servos nobres, entregando liberdade e a lei em serviço ao povo, é um conto confortante de unidade e sacrifício, perfeitamente coerente em uma sociedade secular e sem propósito.
Eles se agarram a narrativas de luta contra genocídios e fascistas, imaginando-se como herois da resistencia a uma ditadura imagiária. Sem tais mitos, como poderiam justificar a libertação de criminosos notórios, a censura de ideias contrárias, as prisões políticas e a destruição da nossa economia?
O mito persiste de que os custos da democracia trazem a sensação de paz, mesmo que não a paz em si. Qualquer coisa que perturbe essa paz percebida é vista como repulsiva, algo a ser banido, jogado no lixo. E é assim que você se vê expulso da sociedade limpinha.
Tal sociedade, encarnada por Grete Samsa, tranquila até mesmo diante da perspectiva de sua associação com regimes verdadeiramente terroristas e ditatoriais, marcha em direção a um futuro que, espera-se, será estéril, descomplicado e repetitivo em sua pacificidade. Ideologias, por mais sanguinárias que sejam, sempre afirmam buscar a paz.
Mas nós, monstros, não podemos nos dar ao luxo de comprar essa idéia. Os progressistas entendem que a guerra cultural envolve o assassinato da reputação de seus oponentes e a destruição de suas instituições. Às vezes, seu adversário político realmente é seu inimigo. Valores e princípios, mais no sentido religioso do que no político, são nossas armas nessa guerra cultural para estabelecer ordem e ortodoxia.
Devemos fortalecer esses valores, sim, e não fingir que fazê-lo seria a verdadeira ameaça à sociedade, à democracia. Reconhecer a inimizade é um imperativo moral; agir com base em nossas convicções religiosas politicamente não é um crime.
A Metamorfose de Kafka, vista pelos olhos de Grete Samsa, expõe a grotesca sonolência de um status quo mantido pela falta de poder, ou vontade, de renunciar à beleza da mediocridade e abraçar a feiura da verdade.
A transformação de Gregor Samsa em um inseto ilustra essa realidade — sua aparência mudou, mas não sua essência; ele permanece preso pelas preocupações mesquinhas daqueles que o atormentam: um monstro sonolento, vestido com os trapos que lhe foram doados. Ser um monstro político tem seus desafios, mas pelo menos oferece a escolha de descartar esses trapos, talvez junto com a máquina que os teceu.
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Meu livro “Primavera Brasileira” está disponível na Amazon (em versões eBook e física), um livro de frases com a crônica do processo eleitoral (por falta de palavra melhor) que o Brasil sofreu em 2022.
Ao ler o artigo, um nome me veio à cabeça. Por isso, se me permitem, faço uma sugestão: leiam o que puderem de Nicolás Gómez Dávila. É uma pena que seus textos não tenham sido traduzidos para o português. Mas há como lê-los em espanhol (no original) ou em inglês.
Muito bom! A democracia tornou-se, na modernidade, uma fábula, um mito em que a utopia é alcançada através do sufrágio universal; a secularização da sociedade não extirpou a religião, pelo contrário, trocou a transcendência do cristianismo pela imanência das democracias liberais. Qualquer um que ameace mostrar que a promessa é uma farsa, terá o destino do monstro. Escrevi um texto (muito inferior) sobre uma obra (também muito inferior), mas que tem alguma convergência com o teu.
https://substack.com/@onavegador/p-148167064