Não Fomos Feitos Para Sentar na Frente de um Computador
Ainda assim, passamos a maior parte de nossas vidas nos sentindo velhos demais para fazer seja lá o que estejamos fazendo
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“Na Itália, nos trinta anos da era dos Borgias, houve guerras, terror, assassinatos e derramamento de sangue, mas produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Enquanto que na Suíça, tiveram quinhentos anos de amor fraternal, democracia e paz, e o que isso produziu? O relógio cuco”
Orson Welles, O Terceiro Homem
Recentemente descobri que sou um iconoclasta, mas apenas com relação aos ícones dos outros — assim como todo o resto do mundo. Não foi uma epifania, mas sim uma reação natural à pergunta: “Quais são as coisas com as quais todos podemos concordar?”
Uma pergunta que ainda não foi respondida de forma satisfatória — ou, pelo menos, não para minha satisfação. Antes de tentarmos uma resposta, devemos perguntar primeiro: “Para que fomos feitos?” Os homens foram feitos para coletar recursos (como gravetos e pedras) e caçar animais de médio porte. As mulheres foram feitas para ter filhos. Podemos concordar com isso, pelo menos como um princípio original? E que ambos deveriam morrer, no máximo, aos 35 anos, quando nossos corpos começam a decair inevitavelmente.
Em algum momento entre a invenção da máquina de lavar e a popularização da Internet, talvez tenhamos alcançado um equilíbrio saudável entre a vida natural e a manufaturada.
Então, nos conectamos à Matrix. Nos tornamos sedentários, lentos e complacentes. Letárgicos. Terceirizamos nossa ciência, simplificamos nossa filosofia e esquecemos nossa religião. Como Cronos, começamos a viver para além do necessário, a ponto de agora contemplarmos consumir nossos filhos para sustentar nossa existência. Seja por dívida ou aborto.
Passamos grande parte de nossas vidas sendo velhos demais para o que estamos fazendo. Meu bisavô agarrava touros à unha nos Açores, vestido como um fidalgo. Em contraste, eu me sento no ar-condicionado, tomando café em meu pijama business casual. Isso não vai funcionar a longo prazo.
Para mim, esse é o maior e mais inextricável paradoxo entre evolução e criação. Não podemos ser construídos como as máquinas mais perfeitas que conhecemos apenas para involuir em máquinas inferiores. Isso contraria a segunda lei da termodinâmica. Mas é o que parece que estamos fazendo.
É bastante evidente: nossas artes estão regredindo, nossa filosofia está regredindo, e também nossa capacidade de ter conversas honestas. Parece que a humanidade atingiu seu pico. No entanto, continuamos a expandir nossa presença — já há muito diluída — de uma forma ou outra.
É possível que a melhor versão de nós mesmos seja aquela que fica atrás de um computador o dia todo, sem construir nada para o longo prazo, só para mais tarde maratonar séries na Netflix? Talvez seja. A sobrevivência do mais bem adaptado não significa necessariamente a sobrevivência do melhor. E se a melhor versão de mim mesmo também for a mais desajustada? A sobrevivência do mais bem desajustado.
Nossa civilização teve uma puberdade difícil. Talvez ainda esteja tendo. Ou está indo direto da puberdade para a menopausa, o que faz sentido quando olhamos para nossas taxas de natalidade decrescentes.
Ninguém Precisa Bancar o Herói
Você passa sua vida com quase nenhum propósito além de um desejo interior reprimido, de que uma tragédia ocorra da maneira ideal, para que você possa bancar o herói. Isso permitiria que você, de forma inédita, se vingasse de coisas que talvez nunca tenham acontecido. Sempre foi você lutando contra seu Rumpelstiltskin interno, que continua ordenando que você prepare o ensopado de coelho mais saboroso do mundo, na opinião dele. Mas quando você falha, enfrenta apenas consequências leves.
No meio de tudo isso, Günther Grass liga (do além) para avisá-lo sobre se apresentar como a reserva moral da comunidade quando você é um homúnculo imoral e mentiroso. Você vai se resignar a esse tipo de vida porque é o ‘menor dos males’. Mas o problema é que o ‘menor dos males’ às vezes cresce... e pode crescer muito.
Sua vida depende das pequenas mudanças que você faz em seu comportamento para se adaptar a um mundo moralmente falido.
‘Os Sofrimentos do Jovem Isentão’ é um Livro Fininho, Fácil de Ler
Como alguém que abre uma lata de sardinhas e se surpreende ao encontrar sardinhas dentro, sente uma triste vergonha por sua falta de fibra moral e se certifica de lembrar que sofre de imbecilidade aguda, não crônica. Uma mistura de Sísifo com besouro rola-bosta. Um isentão.
E então você ouve à distância a música do Flautista de Hamelin, perplexo ao ver que são os adultos que o seguem hoje em dia.
Mas, o que é um isentão?
Na Idade Média, o isentão teria medo até de deixar o leite estragar para fazer queijo. “Será que é higiênico?”
Assim como a Anvisa tolera uma pequena quantidade de pedaços de insetos em uma barra de chocolate, o isentão costumava ver a corrupção moral como algo inevitável, mas que deve ser minimizado. Hoje, eles veem isso como uma desculpa para engolir qualquer barata goela abaixo.
Ninguém entra para uma seita; as pessoas apenas se juntam a um grupo de pessoas legais que pensam de forma semelhante. Exceto o isentão, que entra para uma seita mesmo sabendo que é uma seita. E ele está fazendo de tudo para nos forçar a entrar também. Para nosso próprio bem. Verdade seja dita, ele sabe que todas as seitas honestas devem proselitizar.
O isentão é aquele cara que, quando você pede uma informação na rua, ele te dá a informação mesmo não tendo ideia do que está fazendo. Porque ele só quer ajudar. O que me assusta no isentão é que ele é o tipo de cara que de repente tem um colapso e revela-se um psicopata. “E então ele se torna um serial killer?” Não, então ele defende censura e inclui seus pronomes no perfil do LinkedIn.
Ele é um cara que queria ser soldado, mas se tornou guarda de trânsito. Exercendo aquela autoridade frágil. Uma autoridade dura até o primeiro “E daí, o que você vai fazer?”. Nada. O isentão é o cara que quando o pedido vem errado no restaurante, ele não diz nada. (Nem eu. Acho que reclamar é um pouco déclassé.)
Em vidas passadas, ele foi um viking. Mas era um viking isentão. Ele era responsável pelas tarefas domésticas e nunca saía para pilhar e saquear, como seus amigos mais assertivos. Talvez até negasse que tais atividades estavam acontecendo.
O isentão, em si, é um fenômeno que só existe quando há alguém por perto. Pelo menos na natureza. Um isentão de proveta é uma coisa totalmente diferente.
O isentão é o cara que vai a uma palestra e passa 40 minutos pensando em uma pergunta. Quando finalmente toma coragem, a pergunta é completamente idiota. E todos já queriam ir embora. Ele sobreviveu ao Titanic apenas para se afogar na banheira.
Mas olhe ao seu redor, e você deve admitir: para uma pessoa com poucas aspirações, o isentão faz um estrago e tanto.
O Martelo, o Prego e o Polegar no Lugar Errado
O isentão é o cara que aceitou o Cavalo de Troia, mesmo sabendo o que havia dentro. Porque ele queria um pouco daquela democracia ateniense, onde políticos eram príncipes e a maioria do povo era escrava. Em sua memória emocional, era mais fácil ser servo do que ser livre.
‘Ateniense’ foi uma licença poética. Nossa liberdade de expressão, em si, tornou-se uma pequena coleção de licenças poéticas. Graças aos isentões.
Talvez o problema seja a democracia em si. Na ausência de valores comuns. Como sabemos, o isentão é acima de tudo um ‘democrata’. Se a maioria votar para ele pular da ponte, ele pula. Ô, se pula. Porque foi o que todos concordamos.
E o isentão aprendeu que os direitos democráticos não são exercidos de qualquer forma. Há uma forma muito específica de exercê-los. Qualquer desvio de seus trilhos pré-concebidos desencadeia uma paranoia de ‘salvar a democracia a todo custo’.
E o problema com ‘a todo custo’ é exatamente o que você está pensando.
Em um debate acalorado sobre isentões, Jean-Jacques Rousseau e Thomas Hobbes concordaram: o homem não nasce nem bom nem mau, ele nasce estúpido. Qualquer outra conclusão é simplesmente impossível.
Entre a falta de educação dos outros e sua corrupção justa, o isentão oferece lições morais ao mundo sem nunca olhar para quem está falando. Tentando resistir à tentação de usar aquele último fio de esperança para remendar o fundilho de suas calças.
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