“A nota ucraniana retrata Yaroslav com um bigode ao estilo ucraniano, na tradição do Príncipe Sviatoslav e dos cossacos ucranianos [...] A nota russa mostra Yaroslav com uma barba na tradição de Ivan, o Terrível, e dos tsares moscovitas de sua época.”
Serhii Plokhy, A Porta da Europa — Uma História da Ucrânia
Todo o charme da propaganda russa se revela quando Vladimir Putin encena sua própria versão de Adeus, Lenin! para Tucker Carlson, convencido, talvez com razão, de que os conservadores ocidentais vêm hibernando desde o fim da Guerra Fria.
Para Tucker, a entrevista sempre seria uma vitória de Pirro. Ele sairia do bunker do ditador sanguinário ou preso, ou morto, ou trazendo uma entrevista que, independentemente de seu conteúdo, seria inevitavelmente descartada como ‘chapa-branca’ pelos ‘jornalistas’ pós-modernos.
Andrew Neil, em uma diatribe meio-Olavo de Carvalho, meio-William Bonner, concluiu que o método de Tucker revelava “o curioso apelo desse autocrata russo entre a extrema direita americana, pois eles o vêem, por mais absurdo que seja, como o último campeão inabalável dos valores cristãos contra tudo o que desprezam ou temem — migrantes (especialmente os muçulmanos), a comunidade LGBTQ+, forças clandestinas que manipulam o mundo, ‘elites globais’.” O que está certo, mas também está errado.
Deixando de lado a má-fé esperada, obviamente não foi uma boa entrevista. Tucker merece crédito pelo esforço de negociação e produção, sem dúvida. Quanto à preparação e execução, deixemos nossos parabéns por um trabalho, bem, feito.
Putin, versado em poesia pagã, escreve seu nome na história com as cores vivas do sangue inocente. No entanto, para alguns, ele conseguiu posar como um ‘senhor bem-intencionado, com uma memória convenientemente seletiva’. Esses ‘conservadores’, por algum motivo, tranquilizaram-se com a performance de Putin em constraste à de Joe Biden, demonstrando um intelecto claramente mais aguçado que o do presidente americano — o que não é lá muita coisa, considerando que a maioria dos vertebrados poderia reivindicar o mesmo. No entanto, não podemos ignorar as implicações mais profundas do intelecto aguçado do ditador russo.
Ainda assim, a memória seletiva de Putin parece ter convenientemente esquecido o impacto significativo de eventos como o Holodomor e Chernobyl na formação da identidade ucraniana. Sua mente turva a distinção entre a Ucrânia como um estado — que é uma construção moderna — e sua legitimidade histórica como nação.
No livro A Porta da Europa — Uma História da Ucrânia de Serhii Plokhy, amplamente reconhecido como um dos principais textos sobre a história da região, há uma discussão interessante sobre a formação das identidades dentro do chamado Rus’ de Kiev. Putin e Tucker poderiam se aproveitar dela:
“Historiadores buscam nessas identidades baseadas em principados as origens das nações eslavas orientais modernas. O principado de Vladimir-Suzdal serviu como precursor do Moscóvia de início da era moderna e, eventualmente, da Rússia moderna. Historiadores bielorrussos olham para o principado de Polatsk em busca de suas raízes. E historiadores ucranianos estudam o principado da Galícia-Volínia para descobrir as bases dos projetos de construção da nação ucraniana. Mas todas essas identidades levam, no final, a Kiev, o que dá aos ucranianos uma vantagem singular: eles podem buscar suas origens sem jamais deixar sua capital.”
Putin, no entanto, observa corretamente que o conceito de etnia ucraniana surgiu apenas no século XIX. Anteriormente, o substantivo ‘ucrânia’ apenas denotava as áreas fronteiriças do Rus’. Isso não nega a existência de predecessores dos ucranianos modernos, como os cossacos que surgiram no século XIII.
Revelando sua aclamada postura anti-liberal, Putin estrutura seu argumento contra uma identidade ucraniana independente começando pela língua, conexões familiares, costumes e religião, para somente então abordar os laços econômicos.
Essa afirmação, assim como muitas outras, foi aceita sem críticas por Tucker. A idéia de um fact-check ao vivo do que Putin diz sobre a história russa é, de qualquer forma, risível. Ainda assim, o ponto em questão é que, como esperado, o chefe da KGB mente. E como qualquer mentiroso habilidoso sabe, intercalar verdades entre falsidades é chave para manter baixa a guarda da audiência.
As ‘lições de história’ de Putin apresentam uma narrativa enfeitada da pseudo-história da Rússia. Descrito por alguns como ‘prolixo’, seu relato foi, de fato, conciso e deliberado, considerando o material original. Em uma exposição claramente ensaiada, longe de ser espontânea e ‘de cor e salteado’, Putin passou a sequestrar (retoricamente) as principais figuras da cristianização da Rus’ de Kiev: Yaroslav, o Sábio, e Volodymyr, o Grande.
Putin reconheceu que o Príncipe Volodymyr foi batizado em 988, marcando o início da cristianização da Rus’ de Kiev, omitindo convenientemente que este evento ocorreu na Criméia, que ele continuou a afirmar que nunca foi conectada à Ucrânia.
Então ele salta séculos na história para designar absurdamente Moscou como o berço de um estado russo unificado, ignorando descaradamente que 250 anos antes da fundação de Moscou, a Rus’ de Kiev foi estabelecida — e em Kiev, mas que surpresa!
A lógica é clara: a herança russa deriva da Rus’ de Kiev, a qual teve origem em Kiev, na Ucrânia. Assim, a afirmação de Putin de que ucranianos e russos são um mesmo povo não é absurda. Sua tentativa de inverter a causalidade é onde reside o absurdo. A Rússia veio da Ucrânia, e não o contrário.
Isso traz à luz outra das afirmações ultrajantes de Putin: sua suposta retirada de Kiev como um gesto de boa vontade durante as negociações de Istambul em março de 2022. A interpretação otimista ocidental, sugerindo que sua coluna de tanques de 64 quilômetros recuou devido à ‘brava resistência’ ucraniana, é igualmente infundada.
A retirada de Kiev foi um movimento tático, sua mão forçada à medida que seu blefe se aproximava de ser exposto. As ações de Putin em Grozny, Aleppo e depois Bucha e Mariupol mostraram sua plena disposição em dizimar populações civis para atingir seus objetivos. Alguns especulam que, caso ele falhe em ‘conquistar a Ucrânia’, ele não hesitaria em devastá-la a tal ponto que ninguém mais poderia reivindicá-la. Porém, Kiev tem uma significância muito grande para a identidade russa, para ser submetida a tal ruína.
A Rus’ de Kiev começou como um entreposto viking para comércio com o Império Bizantino. Com a conversão de Volodymyr, o Grande, ao cristianismo e seu casamento com a filha do Imperador bizantino, Kiev transformou-se no berço do mundo eslavo. Construída à imagem de Constantinopla, a arquitetura bizantina de Kiev em igrejas e palácios tornou-se um modelo para cidades eslavas emergentes do século XII em diante, como Moscou. As raízes da Igreja Ortodoxa Russa remontam à Igreja Ortodoxa de Kiev. Até mesmo o alfabeto cirílico, o mesmo empregado na propaganda russa, originou-se em Kiev.
Para apoiar o mito da Rus’ de Kiev como o estado ‘russo’ original e unificado, Putin inventa um “Ducado Lituano-Russo”. Na realidade, o que existiu foi o Grão-Ducado da Lituânia e a posterior Comunidade Polaco-Lituana — monarquias católicas bálticas governando sobre uma população eslava ortodoxa, que, como Putin destaca, falava o “antigo idioma russo”.
O ‘antigo idioma russo’ de Putin, nada mais é do que o Antigo Eslavo Eclesiástico, padronizado no século IX pelos missionários bizantinos Santos Cirilo e Metódio para traduções do Evangelho e textos litúrgicos durante a cristianização dos eslavos, no que é agora a Ucrânia. Assim, o ‘antigo idioma russo’ de Putin é, na verdade, o ‘antigo idioma ucraniano’.
As mentiras históricas de Putin podem servir a um propósito mais profundo: preparar o terreno para reivindicações sobre os Bálticos e confrontar os ‘colonizadores poloneses’ mais tarde. Até hoje, os Bálticos compreendem a Lituânia Católica, a Estônia Luterana e a Letônia, dividida quase igualmente entre Catolicismo, Luteranismo e Ortodoxia Oriental. Putin negou firmemente intenções de invadir os Bálticos durante a entrevista. Ou pelo menos, a Polônia e a Letônia.
Voltando à estranha aula de história de Putin, em 1654, o Czar russo Alexis I interveio para proteger o que poderia ser considerado um estado proto-ucraniano — o Hetmanato Cossaco — do domínio da Comunidade Polaco-Lituana através do Acordo de Pereyaslav. Esse momento torna ainda mais turvas as águas de seu passado compartilhado, já que Rússia e Ucrânia já eram distintas naquela época.
Avançando para o século XX, Putin acusa absurdamente a Polônia de colaborar com Hitler, ignorando os próprios pactos da Rússia — “então nomeada como URSS” em suas palavras — pré-Segunda Guerra Mundial com os nazistas. Isso é um fato que se esperaria que Tucker desafiasse prontamente, mas passou sem ser contestado.
O Pacto Molotov-Ribbentrop de 1939, um infame pacto entre a Alemanha Nazista e a União Soviética, incluiu protocolos secretos dividindo a Europa Oriental, levando à partição da Polônia, junto com os estados Bálticos, Finlândia e Romênia. Anteriormente, o Tratado de Brest-Litovsk em 1918 viu a Rússia Soviética cedendo vastos territórios, incluindo Ucrânia, Polônia e os estados Bálticos, para a Alemanha pré-nazista e seus aliados.
A seleção de cidades que Putin decide mencionar em seu discurso é interessante. Ele opta pelo nome alemão de Königsberg — famosamente o único lugar que Kant viu em vida —, agora pertencente à Rússia e chamado Kaliningrado. Ele também se aprofunda na história de Gdansk, a cidade anteriormente alemã (Danzig) e agora polonesa, de onde Lech Walesa desferiu um golpe mortal à URSS. A razão? Além de um aceno ao corredor polonês, é difícil de determinar.
A narrativa de Putin então torna-se ainda mais surreal, estabelecendo a Polônia como o instigador da Segunda Guerra Mundial, novamente sem contestação por parte de Tucker. Ele então ensaia sua própria visão sobre como redesenhar as fronteiras ao redor da Polônia e da Ucrânia, sugerindo aliados potenciais na Alemanha, República Tcheca e Hungria. De repente, até mesmo a Romênia é implicada no destino do leste da Ucrânia, indicando a ambição de Putin de remodelar a Europa e forjar novas alianças.
No entanto, isso pode ser um ardil, jogando com os medos ocidentais de uma aliança populista europeia inclinada a favor de Putin, liderada por figuras como Le Pen, Orbán e a AfD.
Ironicamente, os aliados mais eficazes de Putin na Europa não são os temidos (e imaginários) autocratas do leste, mas social democratas europeus ocidentais como o ex-chanceler socialista da Alemanha, Gerhard Schröder, e a ex-ministra das Relações Exteriores da Áustria, a liberal Karin Kneissl, que sufocaram a segurança energética da Europa com o gás natural de Putin, depois juntando-se aos conselhos de gigantes energéticos russos Rosneft e Gazprom.
Discutindo a expansão da OTAN para o leste, Putin relembra descaradamente como manipulou políticos neoliberais de ‘terceira via’ na Europa do final dos anos 90 e início dos anos 2000, como o próprio Schröder e Tony Blair.
Putin negligencia sua dívida com o ‘capitalismo liberal’, que inadvertidamente promoveu várias formas de socialismo — Fabianismo na Europa Ocidental e nos EUA, socialismo marxista na URSS, Europa Oriental e China, e Nacional Socialismo na Europa Central — investindo um capital vasto para reforçar o poderio militar do Exército Vermelho de Stalin, a Wehrmacht de Hitler, e o avanço econômico e militar da China.
A recém-remodelada máquina de guerra da Rússia, coincidentemente ou não, foi financiada pela agenda verde da Europa e sua dependência do gás natural russo.
Enquanto Putin falava, a Rússia estava mais uma vez agitando tensões nos Bálcãs. A vitória de Aleksandar Vučić na Sérvia veio a reboque de um aumento da atividade paramilitar no Kosovo. Uma figura peculiar, Vučić declara aliança à UE, FMI e OTAN. No entanto, mantém “relações amigáveis” com Putin. E, como Putin disse durante a entrevista, a Sérvia é “uma nação que é especial e próxima a nós”.
Um ressurgimento do conflito nos Bálcãs beneficiaria o objetivo da Rússia de se tornar o único negociador crível na região, destacando — mais uma vez — a ineficácia da estratégia de dissuasão da OTAN.
A Transnístria, uma região separatista na Moldávia perto da fronteira com a Ucrânia, é convenientemente ignorada por Putin durante a entrevista. Lá, milhares de tropas russas estão estacionadas, e rebeldes alinhados à Rússia proclamaram independência em 2006.
Quando se trata de linhas do tempo históricas, Putin oferece uma perspectiva de rara clareza e cinismo, traçando uma linhagem direta da Rus’ de Kiev através do Grão-Ducado de Moscou, o Czarado Russo, o Império Russo e a URSS, culminando na Federação Russa moderna.
Ele vê essa progressão como um estado russo singular e ininterrupto — uma idéia profundamente enraizada em suas próprias convicções e nada mais. Confiante, ele se alinha não com burocratas perecíveis como Scholz, Biden, Lula ou Macron, mas com figuras históricas como Ivan, o Terrível, e Otto von Bismarck, embora muito por conta de suas próprias fantasias.
A sugestão de Putin de que o bufão Boris Johnson pode ter alterado significativamente o curso da história nos dias de hoje, francamente, lhe confere alguma credibilidade. E reflete mal no Ocidente.
A Guerra Fria, Velha de Guerra
Finalmente estamos chegando ao que realmente importa. Putin lamenta a insistência do Ocidente em reavivar a Guerra Fria depois de sua suposta conclusão. Por causa disso, alguns à direita acreditam que apaziguar Putin agora poderia, de alguma forma, desfazer o litígio do passado. No entanto, o Ocidente já investiu demais na expansão da OTAN, equivocada desde o início, para recuar agora.
Putin disseca a inabalável permanência da Guerra Fria na psiquê ocidental com uma percepção peculiar: um excedente de aparatchiks da Guerra Fria continua no poder, fiéis a uma doutrina liberal bastarda de que a combinação certa de coerção militar e mercados livres conjuraria uma democracia russa, sem precedentes em sua ilustre história de mais de mil anos.
Ele repreende tacitamente Gorbachev por suas ilusões cor-de-rosa das promessas ocidentais pós-Guerra Fria, mas admite ter sido enganado por promessas semelhantes, talvez buscando empatia através de uma aparência de modéstia.
Após o colapso da URSS, oportunistas aproveitaram o momento para colher os frutos de seu longo envolvimento com o comunismo, descendo sobre a Rússia como abutres para reivindicar ativos e consciências a preços de ocasião.
A representação que Putin faz dessa abertura, dessa Rússia “burguesa”, poupa seu antecessor Boris Yeltsin de críticas. Yeltsin, ridicularizado no Ocidente mas reverenciado na Rússia, é o herói nacional que, indo às ruas de Moscou, desafiou os tanques e reprimiu um golpe comunista.
Na narrativa de Putin, a Rússia “burguesa”, falhando em assegurar o verdadeiro amor do Ocidente, é retratada pelo artista do Kremlin como uma donzela em perigo, forçada a alianças promíscuas com a China e outros para se proteger contra supostas ameaças, como os temidos “mísseis iranianos”.
“Veja a situação na Armênia agora,” Putin nunca disse, nem foi questionado.
Imune ao sonho “burguês”, a elite soviética — especialmente a KGB — recusou-se a ser relegada a um papel menor neste novo capítulol. Reconhecendo a queda do comunismo, mas não a própria derrota, eles conceberam o Eurasianismo, uma estratégia ainda mais antagonista ao Ocidente do que o comunismo havia sido.
A abordagem liberal, conhecida por sua preferência por negociação em vez de conflito (mesmo com figuras como Stalin e Mao), finalmente encontrou um adversário que recusou o diálogo.
Muito da Guerra Fria foi uma fachada: a elite ocidental se envolveu com o comunismo sem nenhuma intenção real de desmantelá-lo. Em vez disso, frequentemente forneceram apoio significativo aos russos e chineses.
Putin não é apenas um adversário dessa ordem; ele é um inimigo autêntico, cheio de ressentimento e sonhos de vingança. Com ele, a Guerra Fria está se intensificando, movendo-se além da pura retórica, e o confronto ideológico entre ‘capitalismo’ e ‘socialismo’ que mascarou a verdadeira batalha entre Leste e Oeste.
Crucialmente, o Oriente Médio está posicionado entre esses blocos. Aqui, nações muçulmanas devem decidir: permanecer sob a influência da Rússia, negociar com a elite ocidental, ou aspirar a transformar o mundo em um vasto Califado.
Putin repetidamente, embora não nesta entrevista em particular, alertou sobre uma guerra iminente entre o Ocidente e o Islã, notavelmente deixando de fora a posição da Rússia em tal conflito.
A reivindicação apressada de vitória do Ocidente pode ter inadvertidamente preparado o palco para o retorno da Rússia. O fim abrupto da Guerra Fria agora parece prematuro, especialmente com a ascensão da China provocando uma reavaliação da oportunidade perdida de se alinhar mais de perto com a Rússia quando o Ocidente teve a chance. Se é que teve.
O alinhamento entre a estratégia político-militar de Putin e o Eurasianismo é mais do que apenas coincidência. Assim, negligenciar a reação do principal pensador do Eurasianismo, Aleksandr Dugin, ao discutir esta entrevista seria imprudente. Vamos ver — em tradução livre, minha ênfase:
“Por que a entrevista de Tucker Carlson é considerada crucial tanto para o Ocidente quanto para a Rússia? Vamos começar pela parte mais simples: Rússia. Aqui, Tucker Carlson tornou-se um ponto focal para dois pólos opostos dentro da sociedade russa: patriotas ideológicos e ocidentalizadores de elite que, no entanto, permanecem leais a Putin e à Operação Militar Especial. Para os patriotas, Tucker Carlson é simplesmente ‘um dos nossos’. Ele é um tradicionalista, um conservador de direita e um ferrenho opositor do liberalismo. É assim que se parecem os emissários do século XXI para o czar russo.
Putin não interage frequentemente com representantes proeminentes do campo fundamentalmente conservador. A atenção que o Kremlin lhes paga acende os corações dos patriotas, inspirando a continuação de um curso conservador-tradicionalista na própria Rússia. Agora é possível e necessário: o poder russo definiu sua ideologia. Embarcamos nesse caminho e não nos desviaremos dele. No entanto, os patriotas sempre temem que nos desviaremos. Não.
Por outro lado, os ocidentalizadores suspiraram aliviados: vejam, nem tudo no Ocidente é ruim, e há pessoas boas e objetivas, como dissemos! Vamos ser amigos de tal Ocidente, pensam os ocidentalizadores, mesmo que o resto do Ocidente liberal globalista não queira ser amigo [...] Estamos em guerra com o Ocidente liberal, então que pelo menos haja amizade com o Ocidente conservador. Assim, patriotas russos e ocidentalizadores russos (cada vez mais russos e menos ocidentais) chegam a um consenso na figura de Tucker Carlson.
Não, não se trata de Putin apoiar Trump, o que poderia facilmente ser descartado no contexto da guerra com os Estados Unidos. A visita de Carlson é sobre algo mais. Biden e seus maníacos atacaram efetivamente uma grande potência nuclear por meio das mãos dos terroristas desenfreados de Kiev, e a humanidade está à beira da destruição [Nota: este é um ponto que Putin faz na entrevista, bem como o próximo de que, no jogo da propaganda, é muito difícil vencer os EUA]
A mídia globalista continua a narrar uma série da Marvel para crianças, onde o Homem-Aranha Zelensky magicamente vence usando seus superpoderes contra o ‘Dr. Evil’ do Kremlin. No entanto, isso é apenas uma série barata e tola. [...] Há um Putin real e uma Rússia real, não esses personagens e cenários encenados da Marvel.”
O Beamtenstaat
Vladimir Putin uma vez (ou muitas vezes) declarou, “Não existe ex-homem da KGB”, para nosso benefício, tenho certeza. Ele está convencido de que os EUA orquestram a oposição contra ele, particularmente o terrorismo no Cáucaso do Norte, orgulhando-se perversamente do que vê como a essência da governança estatal russa no século XXI: para ele, o poder não reside na diplomacia ou na força militar, mas na onipotência dos serviços secretos. Na Rússia de Putin, o chamado estado profundo não é uma anomalia; é o estado em sua forma mais verdadeira.
Ele percebe o Ocidente em termos semelhantes, descartando a noção de uma cabala secreta de conspiradores e acreditando que os governos operam universalmente no estado profundo. A diferença na Rússia, no entanto, é marcante e preocupante: na ausência de democracia, Putin reina supremo sobre o estado profundo.
Ele vê os líderes eleitos democraticamente do Ocidente como marionetes, limitados por esse poder oculto. Ele diagnostica isso como uma doença crônica, ignorando convenientemente o papel de organizações multilaterais e do terceiro setor, sobre os quais a Rússia (e seu eixo) exerce uma influência oculta.
Na narrativa não tão pós-Guerra Fria de Putin, o legado do segredo governamental persiste, com o sucessor da KGB, o FSB, às vezes envolto em mistério, outras vezes em assassinatos. Para Putin, a CIA, por outro lado, está muito viva, conspirando para derrubar seus inimigos através de toda ação sórdida possível. Novamente, isso pode até ser verdade. Ou, pelo menos, deveria ser.
O Regime de Putin, reforçado por seu exército e um serviço secreto onipresente, é apoiado por uma vasta rede de alianças, que vão desde o exército chinês até organizações terroristas islâmicas e partidos de esquerda ocidentais. A transformação do FSB em um colosso capitalista, envolvido em lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e negociação de armas, financiando conflitos e influenciando guerras culturais, destaca o domínio de Putin sobre uma agenda equivalente à ESG da Rússia, em contraste flagrante com a aparente paralisia do Ocidente nas mãos da RHcracia.
A confissão de Putin, “Quando falo de parceiros, estou falando de agentes de inteligência”, revela sua visão de um mundo onde o sucesso reside na capacidade de coletar informações, manipular opiniões e exercer influência oculta. Esta é a verdadeira arte da diplomacia na visão de Putin, um jogo de xadrez jogado nas sombras, longe dos olhos do público.
Na visão de Putin do Beamtenstaat — um estado dominado pela burocracia —, seja na Rússia ou no Ocidente, ninguém não é um espião. Seu comentário sobre a situação do jornalista Evan Gershkovich pode até ser meio sincero.
A entrevista de Tucker Carlson com Vladimir Putin não é apenas um produto da mídia de entretenimento; é um vislumbre do pensamento de um líder que vê o mundo através de uma lente de conflito, espionagem e poder indomável. É uma janela para a mente de alguém que acredita que a verdadeira força reside não em armas ou discursos, mas na habilidade de mover-se invisivelmente e influenciar de dentro. Para Putin, a guerra não é apenas territorial; é uma batalha pela supremacia na narrativa global, uma luta que ele está determinado a vencer, não importa o custo.
De Budapeste e Bucareste até Minsk
Isso não significa que a liderança ocidental não tenha falhado repetidamente e Putin seja inteiramente responsável pela situação. Começando com o Acordo de Budapeste de 1994, quando os líderes ocidentais, de forma ingênua, aceitaram a palavra da Rússia como garantia e convenceram a Ucrânia a entregar o então terceiro maior arsenal nuclear do mundo em troca de feijões mágicos que protegeriam suas fronteiras contra a agressão russa.
Felizmente, Putin (ou Yeltsin, na época) nos poupou de uma volta olímpica nesta ocasião.
Uma década depois, a serpente dos ovos dourados do Ocidente decidiu promover a democracia por meio de um golpe de Estado na Ucrânia — a Revolução Laranja — efetivamente reduzindo o país a uma república de bananas. Mesmo que as reclamações de Putin ecoem um ladrão lamentando seu butim roubado, não podemos ignorar a verdade.
Mas o Ocidente tanto subestimou quanto superestimou a ameaça russa. Havia pouca indicação das ambições imperialistas de Putin antes da declaração de Bucareste da OTAN em 2008 de que Ucrânia e Geórgia estavam sendo consideradas para adesão, um movimento que levou diretamente à tomada da Ossétia pela Rússia.
Em 2014, a UE ignorou a reação inevitável da Rússia à proposta de adesão da Ucrânia ao bloco, uma perspectiva que tanto a UE quanto Putin sabiam ser impossível. As consequências do caso Euromaidan resultaram em um esforço militar equivocado, incluindo o bombardeio indiscriminado de civis russos étnicos pelo governo ucraniano — mesmo que provocado, isso é um fato inegável. O que levou à anexação da Criméia pela Rússia.
Ainda assim, mesmo aceitando Euromaidan como o início do conflito atual, a noção de que Putin procura “pôr fim à guerra” ao invadir a Ucrânia em 2022 continua totalmente falaciosa.
Era óbvio que o Ocidente não forçou a Rússia a nada, mas envolveu-se em um pas-de-deux ardiloso.
John Mearsheimer, famoso por espalhar a noção equivocada da ‘culpa do Ocidente’, parte da premissa sólida de que Putin não é louco nem irracional; sugerindo que perseguir uma Grande Rússia ou reviver a URSS seria o fim de Putin, sendo sua racionalidade que, segundo ele, restringe as ambições russas. O que parece sensato.
Mearsheimer conclui que a expansão da OTAN, o alargamento da UE e a promoção de uma democracia falsa forneceram a Putin pretextos para travar o que ele chama de “guerra civil” e lançar suas “operações militares especiais”.
O erro do Ocidente não foi a expansão da OTAN, mas falar demais e agir pouco. Após anos de retórica vazia, quando a OTAN falhou em extender suas fronteiras à porta da Rússia, Putin decidiu trazer suas forças às portas da OTAN.
Sobre os Acordos de Minsk, mediados em 2014 por França e Alemanha para tratar da questão de Donbas, Putin está correto ao notar que o acordo fora desprezado por todos os envolvidos — resultado da confusão dos liberais ocidentais sobre o papel da Rússia como parte interessada e mediadora isenta, uma confusão que persiste. Com os líderes ocidentais preocupados com as tais mudanças climáticas como a ‘maior ameaça dos nossos tempos’, nenhum esforço foi feito para implementar os acordos.
A excessiva dependência da Europa em petróleo e gás russos, a hesitação dos países da OTAN em aumentar os gastos militares, com as sanções que aumentam mais as vulnerabilidades econômicas ocidentais do que prejudicam a Rússia, a entrega descoordenada de ajuda militar à Ucrânia e a falha em deter avanços militares russos; deveriam ser mais do que suficientes para uma reavaliação do modelo de governança ocidental.
Putin, o Presbítero
Sustentado, ao menos em parte, pelo fascínio da Igreja Ortodoxa Russa, Putin optou por erguer a bandeira do cristianismo tradicional, brandindo-a contra o Ocidente hedonista e ateu, assegurando assim a lealdade de amplas faixas de conservadores desiludidos.
No entanto, enquanto encanta essa audiência, Putin, por meio de acordos de cooperação econômica e militar, fortalece regimes anti-cristãos pelo mundo, deixando tais conservadores com a tarefa inglória de bajular seus inimigos mais ferrenhos, em troca de um consolo ideológico fugaz e provavelmente ilusório.
Estes são os mesmos ‘conservadores’ que consideram o Comunismo tão ruim quanto, ou até pior que, o Nazismo. Então, surge a questão: por que eles apoiariam a Rússia de Putin? É semelhante a um cenário pós-Segunda Guerra Mundial, onde os chefes da Gestapo do regime nazista mantêm seu poder, anistiados de quaisquer crimes, tão ou mais poderosos quanto antes. O estado soviético, a KGB/FSB e a Máfia Russa são um e o mesmo.
Sem a menor ironia ou autoconsciência, Putin proclama a Rússia como a mãe amorosa de sua população diversa. “Uma grande família,” ele diz, esquecendo-se de mencionar que tal ‘família’ carrega o peso dos capítulos mais sangrentos da história desde o grande dilúvio.
Putin então afirma, de maneira mais liberal, “A Rússia sempre foi muito leal àqueles que professam outras religiões.” Sem nos aprofundarmos muito, vamos apenas lembrar que ‘pogrom’ é uma palavra de origem russa...
A indagação embaraçosa de Tucker, “você vê Deus atuando no mundo?” busca elicitar de Putin uma declaração de fé. Em vez disso, revela Putin como encarnando o que ele critica no Ocidente: mero pragmatismo.
Ele equipara patriotismo com lealdade a um regime, personificado como a mãe pátria. Alinhando-se mais de perto com o padrão ideológico dos neocons, materialista e evolucionista, do que com as aspirações teleológicas de seus ‘seguidores’ ocidentais.
Quando se acredita em uma providência divina, ser imoral é ser estúpido. Não vamos esquecer isso quando o próximo ideólogo sanguinário bater em nossas portas.
Nota: Este texto representa aproximadamente metade das minhas anotações sobre a entrevista; o restante ainda está sem edição, e eu posso publicá-lo se houver interesse. Por favor, deixe um ‘curtir’ ou um comentário para me dar uma noção!
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