Fetichização In Vitro
Quando o Marxismo Cultural e o Capitalismo Liberal conspiram para deturpar Marx
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Nota rápida: É importante destacar que o conceito de ‘fetichismo da mercadoria’ de Marx é completamente distinto e independente da sua ‘teoria do valor’. Esta última forma a base para conceitos como ‘luta de classes’ e ‘materialismo histórico’. Curiosamente, até mesmo alguns dos críticos mais ferrenhos de Marx, como Friedrich von Hayek, Eugen von Böhm-Bawerk e Alasdair MacIntyre, reconheceram a validade do fetichismo da mercadoria enquanto, simultaneamente, demoliram a teoria do valor de Marx e seus subprodutos.
O Marxismo Cultural busca transformar em política não só nossas relações sociais, econômicas e éticas, mas também nossas funções biológicas. O Capitalismo Liberal tem um objetivo semelhante, porém, em vez de política, prefere o comércio. Nesses tempos de abundante escassez, as linhas de batalha são traçadas não apenas sobre o que é certo ou errado, bom ou mau, mas também sobre o que (ou quem) está vivo ou não.
O embate entre a condição humana e o mercantilismo político foi exposto novamente, quando a Suprema Corte do Alabama, nos Estados Unidos, proferiu uma decisão que, em outros tempos, seria inócua: os embriões criados por fertilização in vitro (FIV) são, inequivocamente, seres humanos. A decisão acabou por abrir uma fissura na direita americana, colocando libertários contra conservadores em um campo de batalha que poucos anteciparam.
Para os conservadores, esses nascituros são ‘crianças não nascidas’ (tradução livre de ‘unborn children’) mesmo antes do primeiro choro. Eles veem um embrião pelo que ele é — uma fase da vida humana pela qual todos passamos, um organismo único com um DNA único, e que o manterá por toda sua vida.
Para os libertários, chamar embriões de ‘crianças não nascidas’ é um ato meramente sentimental, uma vez que, para eles, embriões fruto de FIV são apenas um amontoado de células em um tubo de ensaio — pouco visíveis para serem amados, muito abstratos para serem humanos. “Você não pode abraçar um embrião”, dizia um dos cartazes de protesto, como se isso resolvesse a questão. Não é humano. É um objeto, uma coisa. No máximo, uma mercadoria pertencente a uma espécie não especificada.
Mas esse não é apenas um debate sobre semântica. É uma questão de vida e morte, afinal de contas. Todos sabemos disso. Então, os libertários se contorcem e gritam, alegando que a ‘ciência’ foi reduzida a um conjunto de crenças pessoais pela decisão da Corte — a imposição de uma ética (supostamente) religiosa privada sobre todos. Eles acusam os juízes conservadores de voltarem 50 anos no tempo; quando são eles próprios que estão retrocedendo dois milênios na Civilização Ocidental, enquanto elevam a linguagem politicamente correta do Cientificismo à condição de evangelho.
A decisão do Alabama não é uma vitória do pensamento religioso sobre a razão. É um lembrete de que os princípios científicos e filosóficos que fundamentam nossa compreensão do mundo não podem ser descartados como meras ‘éticas privadas’ por qualquer estrutura política que reivindique o manto da ciência.
Promulgada em 2022 no Alabama, a ‘Lei de Proteção à Vida Humana’ (‘Human Life Protection Act’) já consagrava “a santidade da vida não nascida, incluindo a vida que existe fora do útero [por exemplo, in vitro]”, fundamentando suas leis na pedra fundamental das ciências médicas, o Juramento de Hipócrates. Isso certamente não se trata de impor uma ética privada; trata-se de reconhecer as verdades universais da lei natural, verdades que os libertários, em seu arrogância, continuam a descartar a seu próprio risco.
No caos que se seguiu, marxistas progressistas viram uma oportunidade de cooptar libertários para a causa da revolução cultural. Então, aqui vai uma ideia: por que não cooptar os marxistas da velha guarda para a causa conservadora? Por que não formar uma coalizão contra a mercantilização da própria vida? Podemos chamá-la de ‘Sociedade Protetora dos Seres Humanos’. É hora de unir forças contra aquelas forças ‘de mercado’ que reduzem a vida a apenas mais um produto. Afinal, um dos grandes trunfos da direita populista tem sido atrair a classe trabalhadora com posicionamentos mais conservadores do que os da esquerda lacradora.
Marx criticou o ‘fetiche da mercadoria’ capitalista, onde as relações de produção e troca entre coisas têm precedência sobre as relações humanas. A FIV é o exemplo perfeito do fetichismo da mercadoria. As barrigas de aluguel são o novo ‘exército industrial de reserva’, uma massa de trabalhadoras desempregadas que estão sempre de prontidão — prontas para serem lançadas na frente de batalha econômica sempre que o capital exigir. Invisíveis, mas vitais, transformando o milagre do nascimento em apenas mais uma transação. Fábricas de carne e osso realizando os sonhos de quem pode pagar por eles.
Através de uma lente marxista, a indústria de FIV é um exemplo flagrante da alienação do capitalismo, transformando seres humanos em engrenagens de uma vasta máquina reprodutiva. É um retrato frio e sombrio de nossos tempos, onde tudo está ao alcance da mercantilização, inclusive a criação e destruição da vida; e nos deixamos esquecer a humanidade por trás do processo. Isso levanta a questão: o que significa ser verdadeiramente humano quando até a criação da vida tem seu preço?
Este cenário não é apenas uma anomalia econômica, mas um reflexo de nossa rendição ao materialismo histórico, onde cada ‘evolução’ social é um resultado direto das condições materiais de seu tempo. Nessa luz, nossas éticas seculares tornam-se apenas o resultado natural dos avanços tecnológicos de nossa era.
Assim como nas primeiras páginas do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, somos atraídos por uma visão onde a ‘banalização do bem’ — da produção em massa de bebês in vitro ao entretenimento programado como parte da disciplina civil — reconstrói lentamente a imagem de um mundo desprovido de propósito, repousando confortavelmente em submissão hipnótica a uma ordem estatal hermética.
Ao chegarmos aqui, neste mercado de pulgas da ética moderna, que devemos pausar e questionar não apenas o caminho que estamos seguindo, mas o destino para onde ele nos leva. A mercantilização da própria vida, a transformação do sagrado em rentável, é o legado que desejamos deixar?
A marcha implacável da história, como Huxley percebeu, condensa-se em uma narrativa que diz menos sobre o futuro e mais sobre um entendimento imediato do presente. Ao contemplarmos a FIV, não podemos deixar de vê-la como mais uma peça no quebra-cabeça, mais um passo em direção a um futuro em que o globalismo, o controle genético, a programação comportamental e a intoxicação coletiva não são conceitos perdidos em um caos distópico, mas órgãos integrais e inseparáveis de um mesmo sistema. Onde um aparece, os outros seguirão, anunciando não apenas uma mudança de política ou lei, mas uma mudança no próprio tecido de nossa humanidade.
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