“A vida é cheia de absurdos infinitos, que, estranhamente, nem precisam parecer plausíveis, já que são verdadeiros.”
Luigi Pirandello, Seis Personagens à Procura de um Autor
Eu odeio Literatura.
Principalmente porque gosto de boas estórias. E a Literatura faz de tudo para estragá-las. Essa ideia toda de Literatura como um campo distinto nunca ‘sempre existiu’. É uma daquelas idéias sofisticadas que brotaram do Iluminismo, mas assumimos que sempre existiram — como a escravidão em escala industrial e a eugenia.
Como uma disciplina acadêmica formal, a Literatura surgiu no final do século 19 e início do 20. Antes disso, o estudo da literatura fazia parte de uma Educação Clássica mais ampla. O estudo da gramática, retórica e composição. Perfeição.
1862 viu a invenção da pasteurização. Dez anos depois, a Harvard tem seu Departamento de Letras funcionando. Coincidência? Eu acho que não. A glória das ciências exatas foi a tragédia das humanidades — uma mudança dos valores universais para o relativismo autorreferencial, agora uma tradição das universidades modernas. Então, quando Bob Dylan ganha um Prêmio Nobel ou Harvard ensina Taylor Swift nas salas de aula, isso não deveria causar choque e revolta. É a Literatura fazendo o que faz.
A verdadeira tragédia vai além do dano à educação. É a cultura que surgiu dela, fixada não apenas principalmente, mas quase exclusivamente, na forma. Sustentada pela fé de que um texto escrito é um mundo próprio, e sempre justificado. Não precisa se engajar com a realidade. A Literatura deve apenas falar consigo mesma, eles assumem.
Então o estruturalismo engoliu bibliotecas inteiras. A estória foi negligenciada por truques estéticos: brincar de esconde-esconde com o narrador, abusar da metalíngua. Se você não está escrevendo o próximo Ulisses, então seu trabalho está superado. Você deve ou negligenciar a pontuação ou usá-la como um recurso estilístico — algo talvez inovador quando Joyce fez, mas agora é apenas preguiçoso, pouco original.
E eu não sou um maníaco por pontuação. Só me dê uma quantidade decente. É a pontuação que nos separa, dos animais. Mesmo quando não deveria.
Arte como uma ponte entre o leitor e a realidade, seja verdadeira ou imaginada? A maioria dos escritores modernos ou vira as costas para isso ou a empurra para o plano de trás.
A Literatura agora é como um pedágio, uma camada de pompa desnecessária que você tem que atravessar apenas para ver se há uma boa estória escondida em algum lugar. Chegou a hora de darmos um fim a ela. Mas não me rotule de reacionário por dizer isso. Essa é a crítica de Borges, um dos maiores contadores de estórias. Harold Bloom viu o declínio enquanto acontecia, criticando a direção dos estudos literários nos anos 1960, com a crescente politização no mundo acadêmico.
Mas os escritores modernos estão contra as cordas, e não apenas por isso, mas também devido à tecnologia. Antes, para ouvir uma estória, precisávamos que o autor nos contasse. Mais tarde, poderíamos ler a estória — editada por outra pessoa. Em seguida, poderíamos apenas assistí-la — produzida por outra pessoa ainda. Agora, com a geração por IA, a máquina está testando os limites desse dadaísmo intelectual progressivo.
Degeneração por IA
“Estatísticas são como biquínis. O que elas revelam é sugestivo, mas o que elas ocultam é vital.”
Aaron Levenstein
No início deste ano — como a maioria das pessoas normais —, eu estava em desespero. Bebendo até dormir, lutando contra as repercussões aterrorizantes da greve dos roteiristas de Hollywood, “quem vai sujar nossas estátuas”, eu murmurava dentro de meu copo, “agora que os pombos se foram?”
Esta greve expôs o real problema do círculo literário com a IA: a democratização dos meios de produção criativa. Aqueles ‘intelectuais’ que desprezam o trabalho manual não suportam a ideia de a IA conduzir as massas vulgares para a sua terra prometida. Eles veem a mudança na dinâmica da criação e interação de conteúdo como uma ameaça direta à sua corporação modernista limpinha.
Seu medo é duplo. Primeiro, a obsolescência. Os modelos atuais de IA, cruzando as mesmas idéias infinitamente em uma câmara de eco, espelham perfeitamente o processo dos roteiristas de hoje. Seu trabalho se tornou comodificado. Eles estão sem idéias novas, e o sangue novo agora só pode vir de fora de seus círculos. Eles sabem que os tempos estão mudando.
Segundo, é o poder. Eles querem colocar uma coleira na nossa liberdade de expressão e interpretação. Com ferramentas como o ChatGPT, poderíamos ter Jon Fosse com vírgulas nos lugares certos, Michel Houellebecq sem os palavrões e Maya Angelou sem a pregação feminista. Mesmo que o último retorne uma página em branco.
ChatGPT? Não, ele não está no mesmo patamar de Fosse, Houellebecq ou Angelou. Mas pode se virar bem como roteirista, pelo menos pelos padrões de hoje. Ele pode produzir literatura, mas não estórias. É um pacote estatístico, afinal de contas. Pior ainda, é uma ressurreição por força bruta da finada econometria (n. 1926 — m. 2008).
No entanto, é quase bom o suficiente para nos dar Disney sem a lacração e a CNN sem o viés político. Podemos até misturar e combinar. Imagine Bukowski cobrindo esportes, Kafka fazendo política. É como abrir as portas para a temida liberdade de interpretação.
A Morte do Público
“Dar um texto a um autor é impor um limite a esse texto, fornecer-lhe um significado final, fechar a escrita.”
Roland Barthes, A Morte do Autor
Pedir pelo fim imediato da Literatura dificilmente é uma questão partidária. Estou firmemente no campo de Nietzsche, Foucault e Derrida neste caso. Vendo através da lente de Hayek — que nenhum indivíduo ou autoridade única possui o conhecimento necessário para organizar a sociedade —, leva você à conclusão de que a IA não é novidade nenhuma. Sempre foi o caso-base: um processo contínuo, uma força descentralizadora tornando todo texto aberto à interpretação, reestruturação e ressignificação.
Isso nos leva à verdadeira luta: os efeitos da ‘geração por’ versus ‘consumo de’ IA. Estamos passando de um mercado de produtos culturais produzidos em massa, ligeiramente diferenciados — embora não idênticos —, para um mundo de produtos culturais ainda produzidos em massa, mas feitos sob medida.
Isso é um desenvolvimento bem-vindo. Peter Handke notou a natureza opressiva da arte produzida em massa. Contra isso, vimos a anti-música de Stockhausen, a anti-poesia de Cummings, as anti-peças de Beckett, a anti-arte de Duchamp. Eles foram vistos como revolucionários, mas não o eram.
A verdadeira revolução está na reação que eles causaram. O público se tornou um anti-público. Uma resposta atrasada, mas adequada, ao desconstrucionismo. A pretensão de superioridade intelectual, a decadência moral, a rejeição da beleza levaram o público a uma verdade atemporal: duas pessoa nunca leem o mesmo livro.
Borges, mesmo em sua cegueira física, previu isso. Ele reconheceu seu destino não apenas como escritor, mas como leitor. Considerou ambos vitais. E então previu que a forma de arte clássica da estória sobreviveria ao queridinho da Literatura moderna — o romance.
CărtărescuGPT
“Ele não sabe se Zhuangzi sonhou ser uma borboleta ou se uma borboleta está sonhando ser Zhuangzi — embora deva haver uma diferença.”
Zhuang Zhou, Zhuangzi
Ainda existem muitos grandes autores por aí. Mircea Cărtărescu é certamente um deles. No entanto, até os melhores são vulneráveis.
Na minha opinião, Cărtărescu não é um autor dos mais deslumbrados, embora suas manobras narrativas tenham rendido a algumas de suas obras o rótulo de ‘anti-romances’. O que, de certa forma, considero positivo. A verdadeira ofensa, para mim, é que ele escreve em um idioma diferente. E sua última obra que li, Solenóide, demorou sete longos anos para ser traduzida para o inglês (acho que nem existe em português ainda).
Comprei o novo dele, Theodoros, em romeno. Custou-me 25 dólares mais o frete. Um livro que nem vou conseguir ler. Isso me faz pensar, você realmente possui um livro se não consegue lê-lo? Mas aqui vem o ChatGPT com a resposta, oferecendo ferramentas para a desconstrução e reinterpretação de toda a literatura do mundo por 20 dólares ao mês. Sem custos de envio.
Então, eu criei um tradutor baseado no ChatGPT adaptado para a obra dele. Vou mergulhar em Theodoros com meu próprio CărtărescuGPT, não por despeito, mas como um experimento. Inspirado pelos esforços de usar a IA para ler pergaminhos antigos parcialmente carbonizados encontrados na cidade italiana de Herculano, destruída pelo Vesúvio em 79 d.C. Enquanto eu leio, aqui estão algumas perguntas que espero responder:
Um livro existe para mim se não consigo lê-lo?
Se Cărtărescu escreve apenas em romeno, eu realmente já li suas obras?
Ele é, essencialmente, um autor morto para mim, como aqueles escritores antigos de Herculano?
O romeno é essencialmente uma língua morta para mim, se eu nunca aprender?
Estou lendo o livro real se em outra língua? Algum livro de ficção é real?
Nada realmente novo até agora.
Vou ler um livro que para todos os efeitos não existe. Assim como o zumbido dos solenoides em seu romance coloca seu mundo em movimento, usarei a IA para fazer os meus próprios movimentos enquanto leitor, ‘desafiando convenções’ e ‘subvertendo formas estabelecidas’ enquanto prossigo. Vou me juntar às fileiras da anti-audiência. E se houver aplausos, será um anti-aplauso, consciente de que o silêncio não é o oposto do aplauso. O que é, espero descobrir.
Algo Não Muito Diferente do Ludismo
“‘Chegou a hora’, disse a Morsa , ‘de falar sobre muitas coisas’...”
Lewis Carroll, Através do Espelho
As palavras de Karlheinz Stockhausen sobre os ataques de 11 de setembro, chamando-os de “a maior obra de arte que já existiu”, foram chocantes. Mas não havia elogio nelas; em vez disso, revelavam uma verdade subjacente que permanece oculta para a elite cultural: não há nada inerentemente bom, belo ou justo na arte. E a arte pode ser feia, violenta e destrutiva. Basta olhar as tendências por mais de um século.
Para manter essa ilusão, eles constroem jaulas bem adornadas, fingindo acreditar que as estórias clássicas envelheceram e apodreceram como o retrato de Dorian Gray, recusando-se a reconhecer sua própria podridão moral. Enquanto isso, eles desfilam com suas estruturas complexas e metaliguagem como se estivessem usando as novas roupas do imperador. Tudo para evitar olhar em um espelho que insite em revelar que eles não são os mais belos da terra.
Não estou falando de Joyce e Faulkner, ou Picasso e Warhol. Se você é um gênio, por favor, mude o mundo. Mas se você é apenas bom no que faz, poupe-nos do drama.
Meu primeiro livro ‘adulto’ foi Seis Personagens à Procura de um Autor. Eu não entendi, e talvez ainda não entenda. Eu encontrei o livro aleatoriamente em casa, alguns podem dizer que eu não estava ‘pronto’ para o livro. Mas eu li a estória, ignorando a existência da forma ou da biografia do autor. Sinto falta desse sentimento. Isso, e a vírgula de Oxford.
Se a Literatura é uma tecnologia que deu errado, então eu sou um ludita. No entanto, sigo torcendo pela máquina da IA. À outrance.
Meu livro “Primavera Brasileira” está disponível na Amazon (em versões eBook e física),, um livro de frases com a crônica do processo eleitoral (por falta de palavra melhor) que o Brasil sofreu em 2022.
Lembrei do Ariano Suassuna: existem três tipos de mentira: a mentira propriamente dita, a mentira deslavada e a estatística! Estou lendo O desconcerto do mundo de Gustavo Corção e nas primeiras páginas ele cita o homem que sonhava que era borboleta amarela ou uma borboleta amarela que sonhava ser homem! Seu texto excelente, como sempre!