A CONSTITUIÇÃO DO NATAL
I – Félix dorme e começa sua jornada
“Num campo distante em Pasárgada, uma aranha vigiava o vaivém dos zangões entre as flores, do nascer ao pôr do sol, enfrentando ventos, chuvas e a própria natureza em busca de pólen.
À noite, a aranha, astuta e paciente, tecia suas armadilhas de seda a uma distância calculada, na sombra da flor mais próxima. Um a um, ela capturou todos os zangões; exceto por um zangão jovem e confuso, que sempre a escapava.
Esse zangão não sabia muitas coisas, mas de uma verdade ele sabia: sempre haveria uma nova flor 240 batidas de asas à esquerda da última teia. Ele aprendeu a procurar pelas teias em vez das flores, pois pensava que a aranha, como ele, amava as flores; e se convenceu de que, em vez de armadilhas, as teias eram apenas sinais, indicando onde as flores se encontravam.”
— Boa noite, Félix. Durma bem — disse sua mãe.
— Não, eu vou dormir mal — Félix retrucou.
Havia quase um ano que ele passara o primeiro Natal sem presente. Naquela noite, Félix seria visitado por uma figura que há muito não encontrava.
Um homem que, algumas incontáveis noites atrás, revelou a Félix que uma terrível maldição o acometia: toda vez que ele praticasse um ato de bondade, um dedo de sua mão cairia. Até aquele dia, Félix — um menino de 13 anos de idade — havia perdido apenas o dedo mindinho de sua mão esquerda.
Por medo, e por saber que possuía uma quantidade limitada de dedos, o menino passou a vida dedicando-se às maldades e às pequenas falcatruas que cometia para escondê-las.
Assim conseguia se safar enganando a todos, exceto por alguém muito importante: o Papai Noel. De tantas maldades que fazia, Félix acabou indo parar na lista de meninos malvados.
Durante o quase-ano desde então, Félix se dedicou a planejar sua volta à lista de meninos bons, desde que não precisasse arriscar seus dedos ao praticar boas ações. Ele acreditava receber instruções enviadas por seu misterioso visitante, talvez de forma subliminar — especula-se que vinham através da deep web, ou de um professor substituto sombrio ou simplesmente da programação da TV.
Naquela noite, o homem finalmente estava diante dele. Vestia uma capa preta, sua cabeça reluzia sem um só fio de cabelo que não fosse honesto. Seu nome era Árius, e ele dizia ser “um dos doze”, conhecedor das conexões secretas entre o mágico e o real, ele teria mobilizado sua extensa rede de contatos para ajudar Félix — da CIA ao Google, da Universidade de Cambridge ao Vaticano.
Árius, então, revelou a Félix a exata localização da Terra de Noel, conhecida como o Polo Norte, mas que, ironicamente, agora ficava no Polo Sul. E lhe entregou trinta moedas de prata. Munido delas, Félix deveria encontrar um dos reis magos na Terra de Noel, “aquele em cuja sombra habitam outras sombras”, no exato lugar onde a aurora austral beija a face da terra. Vendo a hesitação no rosto do menino, Árius o confortou:
— Quando você ficou sem presente, sua família não fez nada. Eu estou aqui para te ajudar. Deixe-os e vá ao Polo Sul. Boa sorte, Félix. É tudo um sonho, até que não seja mais.
Felix então roubou as chaves do carro da mãe, forjou um bilhete ferroviário, escondeu-se no trem de pouso de um avião e mentiu sobre quem era para embarcar num navio rumo à Antártida.
II – Na fábrica abandonada
Chegando, Félix desembarcou na Estação McMurdo. No horizonte, a aurora descia até a neve. Ele pulou do navio, e então correu, caminhou, e arrastou-se pela imensidão branca. Mas, logicamente, não conseguiu ir longe e desmaiou muito antes de chegar a seu destino. Ficou caído sobre o gelo, dado para morto.
De repente, sirenes soam e surge o barulho de pneus com correntes quebrando a neve, uma estranha caravana veio a seu resgate: uma ambulância, um caminhão-pipa carregando chocolate quente e um veículo impossível de se descrever em palavras, e que provavelmente seja o único desse modelo que exista.
Talvez fosse o efeito do chocolate quente, ou pelo fato de não desistir nunca, mas Félix acordou e começou a abrir os olhos no momento em que passavam por um grande portão dourado, ladeado por duas torres que subiam até onde se poderia ver no céu.
Félix foi levado às pressas ao topo de uma das torres, de onde a cidade se revelava abaixo, exatamente como em seus sonhos: nas ruas, casinhas coloridas de formatos e tamanhos diversos se enfileiravam ao longo de caminhos de pedra, pontuadas aqui e ali por algumas lojinhas, um campo de futebol, uma igrejinha e um café que parecia aconchegante.
Ao redor, as montanhas emolduravam pequenos chalés, com suas chaminés fumegantes, de onde desciam pistas para trenós ladeadas por árvores, todas cobertas pela neve e por uma decoração natalina que parecia permanente.
Um trenzinho ligava as montanhas à cidade, terminando sua jornada diante de uma imponente catedral, adornada com a mais alta árvore de Natal que Félix jamais havia visto e, em sua praça, o presépio mais belo que se poderia imaginar.
No entanto, algo estava faltando. Não havia luz, nem movimento. Não havia cânticos natalinos, nem risos; nenhuma presença humana ou animal perturbava aquele silêncio invernal. Não havia ninguém.
Na verdade, agora havia um elfo. Um solitário elfo ao seu lado. Ele não vestia um casaco colorido e um gorro, como seria de se esperar, mas um traje de proteção daqueles que só se vê em Chernobyl.
— É aqui, o Polo Norte? — perguntou Félix que, na confusão, até esqueceu onde estava indo.
— Não, aqui é o Polo Sul. Mas, conceitualmente é sim, a Terra de Noel — disse o elfo, removendo o capacete com uma expressão de enfado.
Ele pertencia à ordem dos Chamineiros, elfos que outrora eram responsáveis por limpar as chaminés para que Papai Noel não sujasse suas roupas ao descer. Quando isso ainda era necessário.
Agora, eles são encarregados da purgar a antiga oficina de brinquedos nas noites que antecedem o Natal, época em que os resíduos do pó mágico, que há muito deixou de ser utilizado na produção dos brinquedos, começa a manifestar propriedades que hoje eram consideradas radioativas.
Os elfos, antes artesãos diligentes e criativos, agora estavam relegados à tarefas burocráticas, confinados em cubículos longe da magia. Ele, contudo, se considerava feliz por ainda fazer algum trabalho manual, “como um elfo de verdade” — como gostava de ponderar.
— Como eu vim parar aqui? Que lugar é esse? — indagou Félix, tentando entender o que se passava.
— Esse é o edifício que você deve conhecer, erroneamente, como a fábrica de brinquedos de Papai Noel. Nós te encontramos desmaiado dentro da zona de exclusão ao redor da cidade velha.
Enquanto andavam pela oficina, o elfo alertou que os materiais ali são particularmente voláteis nesta época do ano. A presença de Félix alertou um dos brinquedos que nunca haviam sido entregues ao dono e estavam encostados no armazém: uma unidade completa de busca e resgate na neve.
Antigamente, as crianças podiam pedir ao Papai Noel todo o tipo de brinquedos mágicos, como unicórnios, bonecas falantes, aviõezinhos que voavam de verdade, e até mesmo foguetes em que eram capazes de decolar para Marte de suas camas e retornar antes do amanhecer. Porém, após as Grandes Reformas e a modernização do Natal —substituindo a magia pela tecnologia — tudo mudou.
— Por que você acha que os brinquedos que recebe do Papai Noel são idênticos aos das lojas? As mesmas embalagens, as mesmas etiquetas, os mesmos avisos...
O elfo explicou: leis, regulações, estatutos, padrões e certificações. O Natal fora regulamentado, e a magia subsumida à papelada. Agora, os elfos estavam subjugados não só pela burocracia de infindáveis legislações, regulamentações e normas técnicas, mas também pelo jugo de sindicatos e normas de segurança que tornavam a criação de brinquedos com qualquer resquício de magia, ou alegria, algo próximo do impossível.
— Vez por outra, um dos elfos Presepeiros — que antes eram especialistas em montar presépios, quando as pessoas ainda ligavam para isso, mas hoje trabalham com marketing e design — até esconde uma etiqueta de preço igual às das lojas em algum brinquedo, como uma pegadinha, mas também em sinal de protesto... — o elfo continuou.
Félix, muito esperto, percebeu ali uma brecha. Disse ao elfo que compreendia profundamente os seus problemas e esse era precisamente o motivo de sua jornada ao Polo Sul. Insistiu que precisava ser conduzido imediatamente ao Rei Mago, pois carregava em sua mochila a solução para todos os dilemas da Terra de Noel. “Em breve, elfo, vamos comemorar comendo um churrasquinho despreocupadamente”, ele prometeu.
O elfo, sendo uma criatura eterna, muito inteligente, e dotada de acesso a todas as cartas que as crianças já enviaram a Papai Noel, reconheceu prontamente quem era Félix. Conhecia seus intentos e o propósito por trás de sua visita. A maldição que afligia Félix não lhe era desconhecida, e a ausência do dedo mindinho na mão esquerda do rapaz lhe dizia que, ao menos uma vez na vida, Félix cometera um ato de bondade genuína. Comovido por esta constatação, o elfo disse que topava ajudá-lo.
— Mas vai me ajudar assim, sem mais nem menos? E ainda está me contando tudo sobre como funciona esse lugar? — Félix era um menino desconfiado.
— De qualquer forma, eu preciso te levar até Natália, a nova capital da Terra de Noel. Lá uma série de procedimentos burocráticos te espera, entre eles a audiência com um Rei Mago é de praxe. Depois disso, você terá a sua memória apagada. Ou por acaso você acha que é a primeira vez que temos que lidar com uma criança transgredindo as fronteiras da Terra de Noel? — o elfo explicou.
— Antigamente, eu já teria apagado a sua memória e lhe colocado no primeiro trenó expresso para a sua casa...
— Com uma daquelas máquinas de flash que os Homens de Preto usam nos filmes? — Félix interrompeu o elfo, com uma estranha empolgação.
— Não, com um porrete mesmo; mas agora é ilegal — o elfo explicou, com um estranho desapontamento.
Sob as novas regulações, era necessário preencher formulários infindáveis, dar entrada em requerimentos meticulosos, registrar cada evento de risco e mitigar os impactos da chegada de qualquer visita inesperada. “Felizmente tenho tempo para fazer isso, já não precisam mais de mim para o Natal”, suspirou o elfo.
No caminho para Natália, que ficava no ponto onde a aurora encontrava a neve, eles atravessaram a velha capital. O elfo foi contando a Félix as histórias antigas do lugar, e como havia mudado ao longo de eons.
— Nós já existíamos muito antes das crianças existirem. Presenciamos o meteoro cortar os céus com sua cauda de fogo, o grande dilúvio que reconfigurou continentes, a estrela guia que nos trouxe o Natal...
O elfo então explicou que por muito tempo eles foram nômades, vagando pelo mundo. Somente depois da a inversão geomagnética de Brunhes–Matuyama que eles se fixaram no que ficaria conhecido como Polo Norte, há uns 800 mil anos atrás.
A mudança da Terra de Noel para o sul veio há apenas 500 anos. Um elfo Barqueiro — de uma antiga ordem de elfos navegadores que um dia ajudou Noé a construir sua Arca, mas hoje estava relegada às funções de logística e distribuição — havia acabado de atracar na costa da Antártica quando avistou uma caravela, que havia se perdido ao tentar cruzar o Cabo das Tormentas. Foi o primeiro contato imediato entre elfos e homens.
Combinando a magia dos elfos com a engenharia dos homens, eles foram capazes de consertar a caravela e guia-la não só de volta ao mar, mas também ao redor do Cabo das Tormentas. Após realizar a travessia, eles se juntaram aos homens em uma missa comemorando o feito e se despediram após rebatizar o local de Cabo da Boa Esperança, um nome que celebrava a fé e prometia prosperidade a humanos e elfos.
No próximo Natal, o comandante da caravela retornou ao hemisfério Sul, acompanhado de seu Rei. O Rei, um homem de vasta erudição e rara perspicácia, convocou uma assembleia com os elfos, para compartilhar não apenas os presentes símbolo de sua gratidão, mas sua visão e planos para o novo mundo.
Diante dos elfos, reunidos sob o céu estrelado do sul, o Rei desenrolou um mapa que, mais do que simples representações geográficas, continha possibilidades inexploradas. Ele propôs uma mudança radical, uma translação da Terra de Noel para o Sul, e explicou como as novas técnicas e rotas de navegação que havia aprimorado durante suas viagens poderiam ser adaptadas para melhorar as operações dos elfos.
— Ele também ressaltarou que as bússolas, que cresciam em popularidade, apontavam incessantemente para nossa antiga localização, o que colocava o sigilo de nossas operações em perigo — o elfo pontuou.
A partir desse encontro, prosseguiu o elfo, nasceu a Companhia dos Reis Magos, precursora da atual Sociedade dos Três Magos, incumbida de promover a cooperação entre homens e elfos, e perpetuar o espírito do Natal.
Com o fim da monarquia, a designação ‘Rei’ foi excluída do nome da organização. Contudo, o título de Rei Mago foi mais tarde restaurado por seus membros, durante o período conhecido como a Grande Reforma.
— Então, eles seriam os encarregados de decidir quem estaria nas listas de meninos bons e maus, por exemplo? — indagou Félix, fingindo desinteresse.
— Sim, isso é da alçada deles — respondeu o elfo.
Existem sempre três reis magos, um sucessor para Baltazar, um para Melquior e outro para Gaspar; traçando sua linhagem desde os magos originais por meio de intricadas linhas sucessórias que atravessam diferentes eras e ordens.
O elfo explicou então que, ao longo dos séculos, um dos grandes desafios que tiveram foi lidar com os exploradores que se aventuravam por suas terras no Sul.
— Felizmente, homens como Ernest Shackleton, Jacques Cousteau, Amyr Klink... impelidos pelo mesmo espírito de esperança e descoberta que anima o Natal, tinham o perfil ideal para esse trabalho, e acabaram por se tornar membros da Sociedade.
Com o passar do tempo, as atividades da Sociedade dos Três Magos foram ficando cada vez mais complexas, desenvolvendo relações com todos os governos, entidades multilaterais, grandes corporações e, mais recentemente, até organizações não-governamentais.
A Sociedade se tornou responsável por instituir na Terra de Noel toda sorte de regras e regulações humanas. Isso incluía negociar tratados que asseguram o acesso do Papai Noel ao espaço aéreo internacional, a livre entrada nas residências das crianças sem necessidade de mandados judiciais, habeas corpus preventivos para remediar confusões com a polícia, e até salvo-condutos para entrar nos países onde os símbolos cristãos, como o próprio Papai Noel, são proibidos.
A partir daí, uma a uma, todas as coisas que antes se faziam pela magia, foram sendo substituídas por algum procedimento burocrático. Enquanto isso acontecia, os velhos costumes e tradições que governavam sutilmente o Natal foram se mostrando inadequados para os novos tempos. A Sociedade então propôs uma Grande Reforma, criando um livro que estabeleceu as leis formais que governariam a Terra de Noel; atribuindo direitos e deveres a todos, elfos ou humanos, meninos e meninas: a Constituição do Natal. E fundaram a nova capital da Terra de Noel, Natália.
No curto espaço de tempo em que levaram essa conversa, Félix e o elfo chegaram exatamente a Natália. À medida que avançavam, um fenômeno curioso marcava seu progresso: o passo dos elfos, quando estão nervosos, faz o tempo retroceder meio segundo a cada pisada. “Esse efeito era muito importante antigamente”, observou o elfo, com certa nostalgia, “sendo os elfos seres de índole muito ansiosa, frequentemente se tornam muito agitados com os preparativos na véspera de Natal. Esse retrocesso temporal nos ajuda a alcançar nossas metas mesmo nas situações de maior estresse”.
— Você deve estar se perguntando se aqui irá encontrar o Papai Noel — o elfo continuou, como se lesse os pensamentos de Félix. — A resposta, infelizmente, é não. O Papai Noel vive no exílio, recluso no Polo Norte.
Com a Constituição do Natal estabelecendo a separação dos poderes, entre o mágico e o mundano, o patriarca do Natal foi relegado a uma espécie de Rainha da Inglaterra, cumprindo as obrigações formais que ainda lhe cabiam, mas sem nenhuma influência real sobre como as coisas eram governadas em sua terra.
III – A Sociedade dos Três Magos
Ao contrário de sua chegada na oficina, onde foi acolhido sem questionamentos, antes de entrar em Natália, Félix foi medido, pesado, investigado, revistado, interrogado, examinado, registrado e, finalmente, carimbado. Assinou declarações, prestou juramentos, entregou garantias, nomeou um fiador, providenciou duas cópias autenticadas de todos os seus documentos e posou para uma fotografia 3x4.
Somente então permitiram sua entrada, mas não sem antes marcaram-lhe o casaco com uma letra ‘C’, denotando sua condição de criança.
Natália era uma cidade onde as casas lembravam lojas, as lojas lembravam escritórios, e os escritórios lembravam as fábricas, que não lembravam em nada uma casa. A cidade, em si, parecia com Londres, ou Nova York, ou São Paulo, ou Tóquio ou Frankfurt, amalgamando-se em uma metrópole genérica que poderia ser qualquer uma delas ou, talvez, o extrato daquilo que há de indistinto entre elas.
Félix e o elfo chegaram a um edifício cuja arquitetura obedecia a uma geometria estrita: todas as suas linhas eram tortas e todas as suas curvas eram rigorosamente retas. A sede da Sociedade dos Três Magos impunha-se não pela magnanimidade ou pela elegância, mas por uma feiura tão assertiva que ultrajava a visão. A experiência de contemplá-la era de tal modo avassaladora que provocava um desconforto físico imediato; era como se as pupilas se revoltassem contra as córneas, indignadas por permitirem que a luz de tal aberração invadisse a retina.
Na praça que se estendia em frente ao prédio, erguia-se uma escultura que renunciava à tradicional representação dos três reis magos em adoração ao Menino Jesus, substituindo a reverência por um bloco de concreto desbastado de maneira abstrata e brutalista, com traços marcados onde deveria haver vida. Os elfos Presepeiros batizaram a obra de forma irônica como ‘A Hermenêutica do Mau Gosto’.
O edifício os aguardava destoando da escuridão com uma movimentação rara para a hora; Félix foi poupado da habitual burocracia que antecedia a entrada. Em vez disso, a porta principal se abriu para revelar um homem de proporções quase mitológicas, tão largo quanto era alto, que veio recebe-los na entrada; algo pouco usual para um homem de sua estatura. Ou latitude. Ele vestia uma capa preta, que lembrava muito a de Árius, se não fosse a própria.
— Vossa Circunferência, Excelentíssimo Rei Mago Baltazar! — o elfo assim o saudou, embora aquele título fosse apenas um simulacro do antigo rei mago.
— Engraçadinho. Está querendo ser preso, é? — Baltazar retrucou, com uma voz surpreendentemente fina e melosa, contrastando com sua portentosa caixa de ressonância.
— Não, meritíssimo. É que nos deparamos com uma criança que conseguiu chegar até aqui. Ele alega que precisa falar com o senhor. Dada a vastidão de vosso poder, que só encontra paralelo em vossa envergadura, talvez o senhor possa, de fato, ajudá-lo.
A Sociedade dos Três Magos, que em eras passadas fora composta por reis, exploradores, artistas, filósofos e generais, havia se transformado radicalmente. Agora, era gerida por burocratas não eleitos, indicados através de um processo nebuloso.
— Você, elfo, vá processar a papelada desse menino — disse Baltazar, dispensando o elfo.
O elfo despediu-se de Baltazar com uma saudação usual dos tempos de verão quando ainda vivia no Polo Norte, “Que o sol nunca se ponha em você” — e, resmungando baixinho, acrescentou, “Ainda que fosse possível”, enquanto gesticulava com os braços descrevendo um grande círculo ao redor de sua cintura.
— Meu menino, venha cá, se aproxime — Baltazar se voltou para Félix. — Me diga qual é o seu problema.
Félix, assustado, e lembrando das histórias de sua mãe sobre os três reis magos, hesitou, incerto se deveria confiar em Baltazar.
— Não são três os reis magos? Será somente o senhor a falar comigo?
— Não se engane com minha aparência única, porque somos muitos — respondeu Baltazar, abrindo sua capa. Uma escuridão absoluta invadiu a sala, e, na ausência completa de luz, a figura rotunda de Baltazar projetava uma sombra longa, pálida, cinzenta, dentro da qual outras sombras se entrelaçavam desesperadas, como se tentando escapar.
— Eu tenho aqui o relatório de todos os débitos e créditos de todas as crianças do mundo — anunciou Baltazar, folheando uma pasta bem espessa. — E, olha que curioso, aqui aparece que você possui algo que não lhe pertence. Pense, não há algo que você deseja compartilhar comigo, menino?
— É que eu acho que estou na lista de meninos maus. E acho que é para sempre — Félix respondeu.
— Nada é para sempre, senão não precisaríamos desses corredores espraiados de burocratas e outros assessores.
De fato, Baltazar possuía um exército de elfos ao seu dispor, um para lhe trazer o café, outro que ajustava sua capa, três empurravam sua pesada cadeira ao sentar, um outro escovava os muitos cantos de seu corpo que não conseguia alcançar durante os raros banhos. Havia até um elfo dedicado exclusivamente a limpar de seus dedos a gordura das lagostas com as quais se empanturrava com a voracidade de um cardume de piranhas enfurecidas e os modos e guinchos de um verdadeiro suíno.
— ‘Meninos maus não ganham presente, meninos bons, ganham’. É apenas mais uma lei a ser interpretada, assim como qualquer outra — disse Baltazar, fixando seu olhar em Félix. — Mas, o que é o Natal, senão ganhar presentes? Sobram apenas as superstições e os mitos. Aqui dentro, um outro mundo é possível. Respondemos aos nossos padrões, o Papai Noel responde aos dele. Se acontece de estarmos em alguma vantagem, que assim seja. Podemos não ter a magia, mas compensamos com criatividade, de toda forma. — Félix observava o discurso de Baltazar, enquanto a certeza do sucesso crescia em sua cabeça.
— Recivilizar a Terra de Noel foi difícil... Nosso sistema foi concebido quando a população mundial era de 400 milhões de pessoas, a maioria em só três dos continentes. Hoje, são 8 bilhões ao redor do globo. Precisamos de logística, eficiência, tecnologia... — Baltazar começou a explicar.
— Você acha que tudo isso é feito com pó de pirlimpimpim e magia? Isso exige é muita negociação entre a terra e o além, para fazer as coisas acontecerem. Assim, tenho certeza de que seu problema tem solução.
— Mozart, Pasteur, Madre Teresa… no passado, não faltaram amadores ocupando meu lugar. Não faziam ideia de como botar as coisas para funcionar de verdade. Veja quem foi o meu antecessor direto: Pelé, um jogador de futebol. Mas, o que qualquer um deles jamais resolveu com magia?
— A magia vai colocar os presentes sob as árvores de Natal de acordo com as possibilidades de cada um? Ou vai discriminar, punir... aplicar a lógica da meritocracia?
— Olhe aqui, a lista dos meninos bonzinhos. Veja quantas crianças de famílias mais ricas que a sua, crianças que são melhores nos esportes do que você, que tiram notas melhores do que as suas, que tem mais amigos... é uma competição injusta! — continuou Baltazar, como querendo convencer Félix do que já estava convencido.
— É — concordou Félix, após muito tempo calado.
— Precisamos de igualdade, de equidade, de justiça… — afirmou Baltazar.
— Isso mesmo! — Félix concordou, balançando levemente a cabeça.
— Claro, nem todos podem estar na lista de meninos bons. Mas, se mexermos uns para cá, outros para lá, podemos encontrar o lugar que é seu por justiça! — Baltazar explicou, enquanto uns dos elfos ajustava sua capa.
— Mas, você pode fazer isso? — perguntou Félix.
— Eu sou um homem muito poderoso, mas não posso fazer tudo sozinho, eu preciso da sua ajuda para tanto — respondeu Baltazar. — E, claro, eu não posso simplesmente decidir que você é um menino bonzinho, isso é algo que só as suas ações podem reverter, infelizmente. Mas eu posso fazer com que você seja, pelo menos, deslistado da lista de meninos maus — continuou Baltazar.
— Todo livro é governado por outro livro, exceto pelo Livro que governa a todos os outros. Abaixo dele, encontra-se o livro que governa os destinos dos meninos bons e dos maus; o livro que contém a fórmula para fazer todos os brinquedos, inclusive um que pode ser entregue a você, mesmo não estando na lista dos meninos bons. Um livro que pode conjurar a alegria natalina durante todo o ano e que pode fazer até mesmo o próprio Papai Noel se curvar à sua vontade: a Constituição do Natal — Baltazar explicou.
— E onde está esse livro, como podemos obtê-lo? — perguntou Félix.
— A Constituição do Natal não é um livro mágico. É obra dos homens. E não é um livro que se possa comprar, nem mesmo com as moedas que você carrega.
Félix, então, lembrou-se das moedas de prata. Ele retirou-as de sua mochila e as colocou sobre a mesa. No que Baltazar continuou:
— Essas moedas, de fato, não compram nada, exceto a ilusão. Porque elas não têm curso neste mundo. Nem essas trinta moedas, nem a maçã, nem tampouco o bezerro de ouro.
Após inspecioná-las com os olhos, Baltazar se afastou das moedas e instruiu Félix para que as recolhesse da mesa. Ele sabia que não podia tocá-las, que apenas alguém que ainda preservasse a inocência de criança, e de livre e espontânea vontade, poderia carregá-las e depositá-las em seu destino final, sem sofrer as consequências.
Por um momento, Félix suou frio, temendo que ao trazer as moedas até ali, teria inadvertidamente realizado uma boa ação que poderia custar-lhe os dedos. Mas nada neste sentido aconteceu.
De dentro de um dos muitos armários da sala, Baltazar retirou uma máquina, pouco maior que uma caixa de sapatos e a entregou a Félix.
— Se você veio aqui para recuperar seu presente, esta é a sua chance — disse Baltazar.
Que fique registrado que essa máquina era uma geringonça amaldiçoada, repleta de engrenagens arcanas conjuradas sem nenhuma lógica, coerência ou propósito em um arranjo desnaturado de processos que não tinham começo nem fim. Sua forma inexplicável não foi moldada por mãos humanas, nem seus códigos esotéricos foram guiados, implícita ou explicitamente, pela benevolência de qualquer divindade. Ela é, de fato, a confluência de inúmeros fragmentos de desprezo pela dignidade humana: imoralidade, indecência, indiferença, corrupção, desonestidade e falta de caridade condensados em uma tela, alguns botões e um sininho.
O fato de Deus ainda não ter fulminado essa abominação com um raio significa apenas que Ele deseja nossa lembrança constante de Sua condenação silenciosa por tal atentado contra a virtude humana, e que essa condenação é de fato infinita.
Alguns tentaram imaginar um artesão por trás da criação dessa máquina, mas essa edificação maldita de fios, plástico e vidro refutaria qualquer vestígio de bondade por trás do ato da criação. Assim, suspeito que ela não tenha sido criada, mas sim sua inexistência foi destruída.
Perdoem-me por chamá-la de mera máquina, quando, mais precisamente, ela é uma declaração de nossa insolência diante do bem da sociedade enquanto conceito.
Dentro dela, até a própria lógica de sua existência é desfeita: o produto dessa máquina é prova de que a razão humana pode ser tornada tão uniforme, tão divorciada do livre arbítrio que outrora a gerou, que contradiz qualquer princípio de inteligência orgânica. Ela se projeta como uma coluna de mármore do inferno, erigida por uma arrogância absolutamente insensível à razão.
Félix, então, depositou na máquina, uma a uma, as trinta moedas de prata. O procedimento foi até simples e prático: após depositar as moedas, ele digitou sua idade e confirmou com um botão.
Em meio à escuridão vinda da capa de Baltazar e ao som dos barulhinhos eletrônicos da máquina, a Constituição do Natal então se revelou e, com ela, todos os códigos necessários para alterar as regras da Terra de Noel.
Em posse desses códigos, Baltazar concedeu o desejo de Félix e retirou seu nome da lista de meninos maus. Junto a Félix, muitos outros meninos maus também foram beneficiados. Alguns já estavam há anos sem receber um presente de Natal, enquanto outros, que mesmo tendo saído da lista de meninos maus por bom comportamento, voltaram a ela em Natais subsequentes.
— O velho mantém uma lista dos bons e dos maus. E ele age sobre elas. Brutal, sem misericórdia. Agora, podemos mudar isso — disse Baltazar, em tom de condenação ao Papai Noel.
— Você quer extinguir as listas? — perguntou Félix.
— Não necessariamente. As lista são muito úteis. Mas, quem disse que o velho São Nicolau, esse símbolo do patriarcado opressor, que mistura religião em todos os seus afazeres, e que discrimina as crianças, tem um direito único a ser o Papai Noel? E se nós mudarmos isso?
— Seria ótimo, assim pelo menos ele nunca mais me deixaria sem presente no Natal! — Félix se animou com a ideia.
— Veja aqui. Há uma tecnicidade de foro; está escrito que o Papai Noel deve morar na Terra de Noel, que é aqui no Polo Sul. Como São Nicolau está exiliado no Polo Norte, logo ele é impedido de atuar como Papai Noel!
— Mas, se ele for impedido, quem será o Papai Noel, agora? — perguntou Félix.
— Não se preocupe, o Papai Noel continuará sendo um velho amigo nosso...
IV – A volta de Árius
O próximo ato de Baltazar foi estipular um prazo de 48 horas para que os elfos preparassem tudo para o Natal. Ciente da proximidade da data, Félix questionou Baltazar se esse prazo seria suficiente.
Baltazar, então, revelou seu plano detalhado, delineando tarefas para os elfos de cada ordem. Os elfos da ordem dos Cucurbitáceos foram encarregados de garantir a segurança e de impedir qualquer insurreição entre seus pares. Os Platinados, por sua vez, ficariam responsáveis pela comunicação das novas diretrizes de Natal e por assegurar a aceitação natural das reformas de Baltazar por parte dos demais elfos. Uma a uma, as ordens recebiam suas instruções meticulosamente planejadas.
Exceto por duas notáveis exceções. A primeira envolvia os elfos Ambidextros que, em sua peculiar indecisão, não receberam nenhuma instrução específica. Eram chamados assim não por uma característica física, mas por uma profunda ambivalência existencial, incapacitando-os de tomar decisões ou emitir juízos morais. Esta hesitação crônica os tornava figuras irrelevantes, perpetuamente absortos em suas tarefas rotineiras, jamais erguendo os olhos para questionar o mundo ao redor ou seu lugar nele. Eram, por sua inação e a silenciosa submissão à ordem vigente, convenientemente ignorados.
A outra exceção eram os elfos Chamineiros. Ao perceber que Baltazar parecia tê-los esquecido, já que era a única ordem que ele conhecia, Félix indagou sobre sua omissão, ao que Baltazar respondeu:
— Não os esqueci, eles estão desempenhando uma parte muito importante de meu plano, talvez a mais importante, neste exato momento. Eles apenas não estão cientes disso.
Também chamou a atenção de Félix o fato de nenhum elfo ter sido designado para ir à fábrica, fato que ele também questionou a Baltazar.
— Não temos muito tempo até o Natal, e logo Árius estará aqui para assumir seu lugar como Papai Noel. Precisamos produzir presentes para todos os meninos deslistados, e não confio nos elfos para isso. Prefiro até o caos à magia — explicou Baltazar.
Ainda restavam também ajustes a serem feitos no trenó, que precisaria ser reforçado para suportar o peso colossal de Baltazar, e instaladas medidas de proteção para a careca de Árius contra os ventos cortantes do voo noturno. Contudo, esses detalhes Baltazar optou por manter em sigilo.
— Mas será que teremos tempo para tudo isso? — perguntou Félix, com urgência em sua voz.
Baltazar então abriu a janela de seu gabinete, de onde se podia avistar a fábrica de brinquedos da cidade nova. Em lugar dos habituais robôs, que eram operados por robôs, coordenados por robôs e supervisionados por robôs, o local estava agora cheio de macacos.
— O código-fonte dos robôs foi programado pelos elfos. Não posso confiar — justificou Baltazar, e continuou: — Nosso exército de primatas nos dá a superioridade numérica de que precisamos. Se colocarmos mil macacos trabalhando por tempo ilimitado, e com acesso a ferramentas e insumos — capital e trabalho por toda a eternidade — eles produzirão tudo o que possa existir. Na verdade, bastaria um só macaco que fosse imortal, desde que tivéssemos tempo infinito. Porém, tal magia não existe.
— Se você não acredita ser possível, pense em nosso próprio planeta Terra: um milhão de anos atrás, dez mil macacos, ou alguma criatura semelhante, existiram como nossos antepassados; e, desde então, em um milhão de anos, produziram tudo o que conhecemos, desde a roda até a estação espacial.
— Mas, claro, nós não temos um milhão de anos, muito menos tempo infinito. Então, como vamos arrumar esse tempo? — Baltazar pausou, contemplando a profundidade de sua própria indagação.
— Aí é que entram os Chamineiros, enquanto eles se preocupam em se preocupar, nós ganhamos tempo. — ele revelou mais um detalhe de seu plano.
Nesse exato momento, os elfos Chamineiros estavam caminhando nervosamente em direção ao Polo Norte para acampar em frente ao castelo de São Nicolau. Baltazar então se dirigiu a outra janela, com sua imensa esfericidade carregando papéis e toda sorte de objetos e outras miudezas por onde passava.
— Veja aqui, os Chamineiros também já estão começando a se reunir do lado de fora da fábrica. Instruí os Cucurbitáceos a permitirem, e até incentivarem, que eles façam isso — Baltazar continuou sua explicação.
— Como você sabe, quando os elfos caminham nervosos, a cada passo que dão, o tempo volta em meio segundo. Isso deve nos comprar todo o tempo que precisamos para preparar nosso Natal e produzir os brinquedos para os meninos deslistados.
— Inclusive o meu — falou, baixinho, Félix.
E então, com todo o tempo que precisavam, os macacos foram produzindo todo tipo de brinquedo profano para os meninos deslistados: uma cueca cheia de dólares, dois pedalinhos personalizados, uma boneca Narizinho que falava palavrão, um relógio Patek Philippe 5711G feito de ouro branco e com pulseira de couro de crocodilo. Até uma máquina estocadora de vento eles produziram.
V – O despertar de Félix
Baltazar e Félix então deixam a sede da Sociedade dos Três Magos e se dirigem para a fábrica de brinquedos. Ao chegarem, Félix segue direto para a baia onde os presentes de Natal são carregados no trenó do Papai Noel. Tudo ali era um modelo de organização e eficiência, evidenciado por um terminal onde se podia localizar o presente de qualquer criança do mundo, bastando para isso apenas inserir seu nome, RG ou o CEP de sua casa.
Curioso e ansioso, Félix digita seu endereço em um dos terminais. Para sua surpresa, apenas um presente estava programado para ser entregue em sua casa. Lembrando que tinha um irmão, um menino cuja bondade era inquestionável até onde Félix sabia, o desespero começou a tomar conta de seu coração. A possibilidade de que sua jornada tivesse sido inútil, e que ele ainda estivesse fadado a passar mais um Natal sem presente, fez com que um frio se espalhasse por sua espinha.
Ele então clicou no ícone de seu endereço, com dedos tão trêmulos que quase o fizeram errar o alvo. A tela, após um momento de suspensão que pareceu estender-se por uma eternidade, revelou que realmente apenas um presente seria entregue em sua casa — mas, para seu alívio e surpresa, esse presente era destinado a ele próprio.
Tomado por uma sensação de leveza e felicidade que há muito não experimentava, Félix correu até a plataforma de onde seu presente seria expedido. Lá, ele encontrou um belíssimo pacote embrulhado em papel metálico e com uma fita azul, repousando em um espaço marcado com seu nome. Ao lado, notou o espaço destinado ao presente de seu irmão, vazio.
Nesse momento, ao ver seu rosto refletido no embrulho do presente, Félix pensou em seu irmão. “Será que ele está na lista de meninos ruins? Isso é impossível, ele é um menino bom, ele é um excelente irmão, eu... amo ele demais”.
Admitindo isso em voz alta, Félix chegou a temer, pensando que algum dedo poderia lhe cair por ter declarado seu amor pelo irmão. Para sua sorte, nada aconteceu. Ou talvez ele tivesse apenas mentido.
Ainda com um profundo temor de que estivesse cometendo um ato de bondade, Félix acessou novamente o terminal buscando compreender o destino do irmão. Ele confirmou que seu irmão estava, de fato, na lista de meninos bons, mas havia um asterisco ao lado de seu nome.
Ele então clicou no ícone que exibia uma pequena carta ao lado do nome do irmão, para saber mais detalhes. Antes de começar a ler a carta, Félix verificou se nenhum outro dedo lhe havia caído até ali. Com alívio, constatou que todos estavam intactos, e prosseguiu com a leitura:
“Querido Papai Noel,
Por favor não se esqueça do Félix esse ano.
Ele não é um menino mau. Acho que às vezes ele é assim porque não tem um dedo. Mas isso é porque, quando eu era pequeno, sofremos um grave acidente de carro e eu fiquei preso. O Félix perdeu um dedo, mas conseguiu me salvar.
Meu irmão é meu herói.
O meu presente esse ano você pode dar para ele.
Feliz Natal!”
Félix, já iria receber seu presente de Natal, não por conta das maquinações de alguma lista, mas pelo sacrifício do irmão, que abriu mão do seu próprio presente. Ele então se lembrou dos atos bons e ruins que compunham sua vida, de suas ações no dia do acidente e de como ele daria todos os dedos de suas mãos pela felicidade do irmão, sem hesitar.
Num impulso de amor fraterno, Félix voltou até a plataforma. Respirou fundo e trocou seu presente de lugar, colocando-o no espaço reservado para o do irmão. Ele então se agachou, fechou os olhos e soltou um grito prenunciando uma dor lancinante, sabendo que este ato lhe custaria um dedo.
Mas, nada aconteceu.
Félix finalmente compreendeu que ele nunca havia sido amaldiçoado: o que o colocara na lista dos meninos maus foi uma mentira que ele acreditou sobre si mesmo, uma que lhe permitia não assumir a responsabilidade por seus atos. Percebendo que ele sempre teve a possibilidade de ser bom, ele entendeu quem ele verdadeiramente poderia ser.
Félix então correu novamente para dentro da fábrica, procurando Baltazar para tentar reverter o mal que ele causou. No caminho, ele vê uma pilha de presentes que seriam destinados para crianças boas, sendo desmontados para que as peças fossem recicladas em brinquedos para crianças recentemente deslistadas.
Olhando ao seu redor, Félix constatou que todos os brinquedos construídos pelos macacos apresentavam sérios problemas durante o controle de qualidade. Cada um, apesar de ser constituído das mesmas peças e ter aparência externa idêntica à dos verdadeiros brinquedos — imitações perfeitas em embalagem, forma e até no toque — revelava falhas fundamentais, pois eram frutos de um processo desprovido da verdadeira intenção e do senso de propósito que caracterizam o espírito do Natal.
O aumento do burburinho vindo de fora da fábrica chamou a atenção de Félix, que avistou os elfos Chamineiros se acumulando ao redor do edifício, e enfrentando todo tipo de intempéries. Eles exibiam uma tenacidade que desafiava a lógica de sua pequena estatura e frágil constituição. Félix então entendeu que aqueles elfos eram movidos pelo verdadeiro espírito do Natal, o mesmo que ele havia ajudado Árius e Baltazar a tentar destruir.
Assim, Félix correu para abrir as portas da fábrica, unindo-se a eles na resistência. Ao reencontrar seu amigo elfo, ele não conteve sua exaltação:
— Não existe maldição alguma! — ele proclamou, com a voz carregada de alegria.
O elfo, subindo num caixote de madeira que mal o deixava à altura de Félix, aproveitou o momento:
— Todas as regras que nos aprisionaram desde a Grande Reforma não passam de armadilhas de papel! Um labirinto de mentiras cuja única saída é através da verdade! A magia sempre foi real, e, noves fora a nossa submissão, tudo o que a Sociedade dos Três Magos faz é assinar alguns papeizinhos! Nós venceremos!
Enquanto os Chamineiros invadiam a fábrica, Baltazar, tomado pela covardia típica dos autocratas decaídos, fugiu buscando refúgio no edifício da Sociedade dos Três Magos, sob o amparo de Árius. De lá, Árius já proclamava, com uma voz que pretendia ser definitiva, sua chegada à Terra de Noel.
Tomando um caminho distinto, Félix e os elfos Chamineiros alcançam a Sociedade dos Três Magos pouco tempo depois de Baltazar. A habilidade dos Chamineiros em se mover pelas atalhos mais obscuros de Natália lhes dava uma vantagem contra a lenta progressão de Baltazar, cuja gravidade imponente dificultava sua locomoção.
Ao chegar, Félix transpôs com facilidade a segurança montada pelos elfos Cucurbitáceos; na pressa, Baltazar havia se esquecido de lhes passar novas diretrizes, depois de tê-los instruído a não barrar nenhum invasor. A palavra ‘invasor’ soava estranha aos ouvidos dos Chamineiros, que não podiam conceber como uma criança jamais poderia ser considerada uma invasora na Terra de Noel.
Na Sala principal, Baltazar, cuja robusta figura antes dominava o espaço, agora se escondia na vastidão da barra da capa de Árius. Ao reencontrar Árius, Félix, incapaz de conter sua raiva, explodiu:
— Você mentiu para mim! Eu nunca fui amaldiçoado!
Árius, com uma calma perturbadora, tocou a cabeça de Baltazar, que imediatamente ficou careca — um efeito peculiar de Árius, pois onde ele tocava, nada crescia, nem mesmo cabelo. Dirigindo-se a Félix, ele provocou:
— Você sabe a diferença entre Baltazar e eu? — Enquanto falava, Árius começou a remover as moedas de dentro de caixinha mágica onde Félix as depositou. — É que eu acredito na magia. Ainda que na magia negra. E ele não.
Com essas palavras, Árius aproximou-se de Baltazar, que tremia tanto que se poderia jurar que o prédio inteiro balançava com ele. Cheio de feitios e teatralidade, Árius lança as moedas de prata sobre Baltazar, que começou a derreter enquanto o cheiro de banha de porco queimada impregnava o ambiente com uma acidez pungente.
Árius então se pôs a responder a pergunta de Félix, com uma serenidade quase oracular:
— Eu não menti para você, Félix. Eu te ensinei uma lição, uma que você se recusa a aprender: se você for acreditar na própria mentira, acredite com força o suficiente para que ela se torne verdade, ou pagará um alto preço — Árius fez uma pausa, para apreciar sua dramaticidade de perto. E então continuou.
— Tudo que existe é uma mentira que se torna real dependendo de quem acreditar nela. A máquina onde você depositou as moedas, era um engodo para enganar os fracos de fé. Mas o pobre Baltazar acreditou nela. E isso aqui — ele levantou a Constituição do Natal —, este documento, assinado sem nenhuma intenção verdadeira e aceito por aqueles que nem sabem o que ele diz, me dá todo o poder que eu preciso agora. Mas não deixa de ser uma mentira, do mesmo jeito.
Árius fez mais uma pausa, confundindo o brilhantismo com a luz refletida em sua careca. Depois continuou:
— E você sabe a diferença entre mim e São Nicolau? É que todos acreditam em mim. Inclusive você.
Com essa revelação, Árius proclamou sua última lição com o tom de um decreto fatal:
— Sendo assim, agora que tenho o que quero, vou lhe estender uma última lição: quando você vende sua alma, é melhor entregar o que prometeu!
Lançando sua capa para trás, Árius avançou na direção de Félix com uma fúria assassina. No exato momento, um relâmpago vermelho irrompeu na sala, acompanhado pelo som de sinos que dobravam ao longe.
Era São Nicolau, que se postou entre Félix e seu algoz.
— Mas o que você está fazendo aqui? Você foi banido, está inelegível! — Árius exclamou, com olhos tão esbugalhados que mal lhe cabiam nas órbitas.
São Nicolau, imbuído de uma serenidade que contrastava com a agitação covarde de Árius, o encarou diretamente nos olhos, e com a voz firme disse:
— Árius, eu nunca puni nenhum menino que encontrasse na lista dos malvados. Embora, por vezes, fiquem sem um brinquedo quando uma lição severa se faz necessária, o verdadeiro presente que posso oferecer é ajudá-los a se transformarem em homens de verdade. Contudo, deste destino, a vida já te dispensou...
Árius, temendo que o discurso de São Nicolau o deslegitimasse frente aos elfos, interrompeu:
— Um homem que desrespeita sua própria palavra? Que ultrapassa os limites estabelecidos, desfazendo acordos selados e aqui tenta usurpar aquele que legitimamente o sucedeu e que nada deve à tua justiça?
— A ignorância e a imoralidade, caro Árius, são como duas muletas que, quando cruzadas, provocam uma queda da altura de sua arrogância. É verdade que fui exilado, e o exílio deveria me impedir de estar aqui. Porém, ao ser removido do meu cargo, meu exílio também foi extinto. Assim, estou livre para retornar à Terra de Noel e voltar a distribuir alegria, paz e... justiça... Ho, Ho... Ho!
Com essas palavras, São Nicolau desferiu um golpe direto contra Árius, um soco que foi menos um ato de violência física e mais uma declaração de guerra contra as forças sombrias que ele personificava. O impacto foi de tal magnitude e comprimiu a cabeça de Árius com tamanha força que, por um instante brevíssimo, seus folículos reviveram sua antiga glória, fazendo irromper uma magnífica cabeleira, apenas para, em seguida, vê-la cair — uma ironia capilar que marcava o retorno efêmero da vida à cabeça estéril de Árius antes de sua ruína definitiva.
Naquele instante explosivo, as entidades malévolas que infestavam seu corpo foram exorcizadas numa erupção de pura negatividade: vultos retorcidos, vestígios de desilusões antigas e ecos de mentiras há muito sussurradas se desvaneceram, como se um vórtice de escuridão tivesse sido aberto e então brutalmente selado.
A expulsão dessas forças sombrias foi acompanhada pela evocação dos pecados arcaicos que fundamentavam a corrupção humana encarnada em Árius, purificando o mundo da inveja de Caim, da traição de Judas, da ganância de Crassus, do ciúme de Salieri e da ira de Iago; todos arrastados de volta ao seu senhor e arquiteto, que agora recebia seu filho pródigo com o calor de um abraço do fogo eterno.
Árius se dissolveu no ar, dispersando-se no vazio para que nunca mais seja lembrado. Provando que nem mesmo a substância do mal em sua forma mais destilada é capaz de subsistir diante da presença imponente da verdadeira virtude. E onde Árius uma vez se ergueu, nada restou senão as cinzas de sua derrota e a certeza de que o verdadeiro poder — aquele que não se origina no papel ou na vaidade humana — é indestrutível e incorruptível.
Recuperando do chão o gorro vermelho, símbolo de seu ofício e autoridade que lhe fora usurpado — mas, principalmente do amor e do espírito que lhes dão sentido — , São Nicolau ergueu-se entre os destroços do que uma vez fora Árius. Ele então alçou a Constituição do Natal em meio a Félix e os elfos, se virando lentamente para que cada canto da sala, cada par de olhos ali presentes, testemunhasse o ato que se seguiria. Então, com um gesto, partiu o documento ao meio, que se vaporizou no ar instantaneamente.
— A verdadeira Constituição do Natal não reside nos direitos de receber presentes, nem nos deveres de se comportar para permanecer na lista de bons meninos. Se fosse isso, em vez do Natal, estaríamos celebrando promessas muito mais atraentes de presentes melhores, mais abundantes, talvez infinitos, que nos cobraria pouco ou até nenhum esforço, formuladas com uma desfaçatez que me faria corar de vergonha em um tom mais forte que o do meu uniforme. — O Papai Noel disse, com sua voz ancestral ressoando pelas paredes.
— Contudo, aqueles que depositaram sua fé nessas promessas pouco tiveram a celebrar, pois tudo o que encontraram foi sofrimento e arrependimento. Agora, permitam-me lhes dizer o que realmente compõe a ‘constituição’ do Natal, do que ele verdadeiramente é feito: das promessas silenciosas que se cumprem sem exigências, da confiança que se entrega sem cálculos, do perdão que se oferece sem hesitação, e do amor que excede todo limite mensurável. Os pilares sobre os quais o Menino Jesus repousou serenamente em sua manjedoura. Hoje, ele está no irmão que faz um sacrifício altruísta por outro, que talvez nunca venha a saber desse ato — proclamou o Papai Noel, com os olhos fixos em Félix.
O elfo Chamineiro, após um breve silêncio, voltou-se para Félix e, com uma voz baixa, confidenciou:
— Eu sabia, desde o instante em que eu te encontrei, que as palavras de seu irmão eram verdadeiras.
— Se você sabia de tudo, incluindo a razão pela qual vim até aqui, por que escolheu me ajudar? — indagou Félix, em um misto de confusão e perplexidade.
— Eu não te ajudei, eu confiei em você. Confiei que você, na hora certa, compreenderia o que aprisionava sua consciência. E que a força para vencer o medo você já tinha, senão não teria vindo até aqui. Só precisava de uma mãozinha para se livrar dessa barreira.
Em seguida, o elfo aproximou-se discretamente de Papai Noel e sussurrou algo em seu ouvido. Félix, consumido pela curiosidade, quis saber sobre o que conversavam.
— Eu estava apenas pedindo uma pequena mudança de regra — disse o elfo, ao se afastar de maneira suspeita.
De repente, o elfo tirou um porrete do bolso, com o qual bateu na cabeça de Félix, e o despachou no primeiro trenó de volta para casa.
Em sua casa, Félix desperta na manhã de Natal e a primeira coisa que faz é correr para abraçar seu irmão, sabendo que tudo teria sido um sonho, até que não fosse mais.
Na sala, diante da árvore de Natal, um zangão confuso pousa em cima de um presente, depois em outro. E então, sai pela janela.
Feliz Natal!
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Cena pós-créditos
Um elfo Presepeiro, que observava tudo com muita atenção, aproximou-se do elfo Chamineiro e disse:
— Mas e se esse fosse o plano de Árius para ajudar Félix o tempo todo, e o menino realmente era acometido de uma maldição — da qual ele realmente se livrou — que era acreditar em suas próprias mentiras?
O elfo Chamineiro, sem hesitar, acertou a cabeça do elfo Presepeiro com um porrete, sabendo que, entre os elfos, esse instrumento funciona de maneira mais convencional.