No xadrez, o termo alemão zugzwang descreve a situação em que um jogador é forçado a fazer um movimento, mas todos os movimentos possíveis apenas pioram sua posição. Foi esse o cenário que a direita brasileira enfrentou após as eleições de 2022: se não agisse, o país voltaria às mãos dos corruptos condenados pela Lava Jato; se agisse, seria tachada de golpista. Setores da direita, acostumados à ideia de que o gigante estava apenas adormecido, se viram diante da possibilidade de que o gigante talvez estivesse, de fato, morto.
A prisão do General Braga Netto no último sábado escancarou esse zugzwang aos olhos da opinião pública. Na ausência de uma via legal que interrompesse o que parecia inevitável, não é difícil entender como Braga Netto, um militar fiel a seu juramento, se tornou um herói nacional para muitos brasileiros.
Braga Netto não roubou, não traficou, não lavou dinheiro, nem corrompeu ninguém. Ele foi preso por, supostamente, rascunhar um plano para evitar que um ex-presidente condenado por corrupção e lavagem de dinheiro “voltasse à cena do crime” — para usar as palavras de seu próprio vice.
É verdade que a narrativa toda abusa da criatividade. Fala-se em um complô no qual Braga Netto teria levantado fundos junto ao agronegócio para que os ‘Kids Pretos’ tomassem um táxi rumo a esse suposto golpe de Estado; culminando em sua prisão, decretada por alguém que o partido do suposto alvo acusava de advogar para o PCC.
Mesmo que o plano se revele tão quixotesco quanto apontado, e ainda que uma alegada conspiração para executar figuras públicas (se confirmada) possa abalar profundamente a defesa do general, muitos se sentiram até certo ponto aliviados com a revelação de uma suposta ‘minuta do golpe’ pela Polícia Federal — ao menos havia no alto escalão quem se empenhasse em dar uma resposta aos anseios da sociedade.
Quando o verdadeiro golpe foi dado ao se retirar da cadeia a quadrilha do Petrolão, na base da canetada, as supostas ações de Braga Netto ainda indicariam que Jair Bolsonaro finalmente acertou na escolha do vice — após a trágica experiência com o fraco General Mourão, que agora talvez perceba que a tal ‘democracia’ não anda lá tão pujante.
De toda forma, a prisão preventiva de Braga Netto, supostamente por interferência em investigações — curiosamente já concluídas —, soa oportunista e reforça a impressão de que não há base sólida para a denúncia de um crime efetivamente cometido e devidamente apurado.
A investigação tem claro viés político, e tudo indica que o STF planeja suas ações de forma a causar o maior dano possível à reorganização da direita no país, com vistas às eleições de 2026. Seu objetivo não seria buscar ‘justiça’, mas assegurar sua própria perpetuação no poder. A atuação de um STF que se propõe a “empurrar a história” e “derrotar o bolsonarismo” acaba alimentando tais suspeitas.
Seus ministros querem mitigar os supostos riscos da polarização à democracia, mas o que o STF propõe? Qual é o grande plano de ‘recivilização nacional’? O que temos à mesa é uma exigência para que a direita seja ‘desradicalizada’ — como se a preocupação com eleições transparentes, o respeito às leis e a plena liberdade de expressão fossem necessariamente sinônimos de fascismo.
Se não for esse, de qual extremismo a direita precisa se curar? Se a direita se propuser a fazer uma autocrítica e buscar as raízes de sua ‘radicalização’, logo perceberá que a resposta está no desmonte do aparato de combate à corrupção. Nesse contexto, a tão propalada ‘recivilização’ equivaleria, na prática, a aceitar uma absurda normalização da impunidade e a se converter em ‘democratas novos’ — ou seja, em velhos colaboracionistas.
É igualmente absurdo que a população tenha de se justificar ao STF em um país onde, teoricamente, ainda vigora a presunção de inocência. Com o Congresso e o Executivo, negociamos através do voto. Mas como o povo pode negociar com o Judiciário? Esse debate não cabe nos gabinetes do poder, tampouco nas urnas. Resta apenas as ruas, onde o medo e o silêncio imperam.
Qualquer análise séria sobre um suposto golpe contra as instituições democráticas deve começar por uma questão simples: “como é possível que as instituições estejam funcionando normalmente, enquanto os envolvidos no maior escândalo de corrupção da história voltam ao poder como se nada tivesse acontecido?” Ou então não passa de jogo de cena.
Exigir que os condenados pela Lava Jato cumprissem suas penas jamais seria uma ameaça à democracia no Brasil se ela estivesse viva em qualquer sentido significativo do termo. Vale sempre questionar as premissas.
A narrativa oficial, contudo, comporá um grande arco histórico a ser reescrito: Lula não sabia do Mensalão, o impeachment de Dilma foi um golpe e a Lava Jato não passou de uma trama da CIA para destruir a indústria nacional, vingar-se de Lula por ter ‘acabado’ com a pobreza e alavancar as ambições políticas do juiz Sergio Moro. Já no capítulo mais recente, segundo essa versão alternativa da História, o General Braga Netto esteve próximo de executar um golpe de Estado para reverter eleições livres.
É fruto de uma fé cega nas chamadas ‘instituições democráticas’ — não porque sejam justas e infalíveis, mas porque, no fundo, seus próprios defeitos funcionam como uma indulgência que permite ao Brasil seguir errando impunemente. É a mediocridade do pragmatismo mesclada à ingenuidade de certo idealismo: na teoria, a democracia reina; na prática, ela permanece refém de arranjos oportunistas.
Quando os arqueólogos do futuro examinarem estes acontecimentos, livres do ranço ideológico e da letargia induzida pela COVID, talvez enxerguem na prisão de Braga Netto um brado retumbante desse sistema, reafirmando o credo de nossas ‘pujantes’ instituições: Lula, um corrupto condenado, sobe a rampa, sim!
Até lá, tais instituições se empenharão em atirar todos na vala comum da corrupção e do golpismo, na esperança de que, apenas pelos ossos que restarem, ninguém saiba ao certo quem foi quem.
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Fantástico!
Excelente análise. Dois pesos duas medidas e o Brasil tomado por uma quadrilha.